A precarização do ensino é uma guerra contra as classes populares

Lucília Machado

É fundamental fortalecer essa capacidade de reflexão e de juízo crítico. Pra isso é necessário implementar projetos democráticos, inclusivos e plurais. Coisa muito distante do que o atual Ministério da Educação está providenciando

O atual contexto brasileiro é muito adverso à educação, à cultura, à ciência e ao conhecimento. É um contexto que conta com a co-participação e a cumplicidade do Ministério da Educação e com a negligência dos impactos negativos da pandemia da COVID-19 sobre a educação brasileira. Haja visto a negação para comprar os laptops, instalar as internets para que os alunos brasileiros pudessem acompanhar a escolarização nesse período de recolhimento.

A origem desse quadro é uma ofensiva ultraconservadora, da chamada “guerra cultural”, de que faz parte o movimento chamado “escola sem partido”. E há um falatório sobre o mal desempenho dos alunos das escolas públicas que legitima a intromissão das Fundações e Institutos ligados a bancos e empresas com seus pacotes educacionais visando o que eles chamam de “melhorar a educação brasileira”.

A política desse movimento é de negação da ciência, das artes e da cultura. É um discurso agressivo a tudo o que a ultradireita diz ser “doutrinação ideológica”, tudo o que ela interpreta como “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, “globalismo”… Hostilidades contra segmentos da população por conta das suas identidades de gênero, religiosa. Ataque aos direitos humanos. Intimidações milicianas, incluindo violências físicas contra opositores, perseguição aos estudantes, aos professores.

Recentemente o próprio ministro da educação disse que hoje nós temos estudantes brasileiros que com 9 anos de idade não sabem ler mas eles sabem colocar uma camisinha. Isso não é de forma alguma uma forma de um ministro da educação se colocar. É um vexame. Além de ser um desrespeito com as nossas crianças. É uma pregação cuja intenção é de fato solapar a confiança na escola, suas relações internas e também externas, com os pais e a comunidade, para implantar o que eles acham que é certo, que é a chamada ‘home schooling’, que é a escola familiar.

A reforma do ensino médio é um exemplo da simplificação da educação, em que sociologia e filosofia foram sacrificadas em termos de carga horária.  No que se refere à política nacional de livros didáticos, o que a gente está assistindo é a censura. As editoras estão sendo compradas por grandes corporações em conluio com essa política. É uma articulação em nível mundial, não é só aqui no Brasil, nós apenas estamos dentro desse contexto. Atrás do Ministério da Educação tem as investidas de empresários, políticos, militares, especialistas articulados por gabinetes estratégicos como o chamado “gabinete do ódio”.

O que esse pessoal todo tem em comum? Uma reação aos poucos avanços educacionais que foram alcançados pela sociedade brasileira nas últimas duas décadas, e a defesa dos privilégios de uma minoria que quer a todo custo manter as camadas populares sem acesso ao conhecimento.

Lembram o que Paulo Guedes disse quando o dólar estava a R$1,80? “Ah, uma festa danada! Empregada viajando pra Disneylandia”. Lembram quando ele disse: “atualmente as pessoas estão vivendo até os 100 anos, o Estado não dá conta de arcar isso”? E com relação ao FIES – Fundo de Investimento ao Estudante do Ensino Superior – o que ele disse “que filho de porteiro está entrando na faculdade”.

É um poder político reacionário sustentado pelo capital transnacional que mobiliza as velhas classes médias, temerosas da mobilidade social das camadas populares. Mobiliza também setores privilegiados dos trabalhadores, principalmente masculino e branco, que não querem perder seus espaços no mercado de trabalho. É uma cultura neofascista, caracterizada pela ideia de supremacia racial e/ou cultural, xenofobia, homofobia, intolerância religiosa, ataque também aos povos originários… É realmente a banalização da violência, simbólica e com fascínio pela dominação.

A educação é atingida por esses valores. Nós democratas aprendemos e a crer e a defender que o estado deve prover aos cidadãos os seus direitos sociais e que todo direito social é uma classe dos direitos humanos. Tá lá na Declaração Universal que foi promulgada pela ONU em 1948.  Só que a realidade brasileira de hoje, e mesmo a mundial, tem se mostrado contrária à efetivação desses pressupostos.

A PL 5595/20 que considera a educação como atividade essencial, a educação presencial, intimando portanto a volta às aulas, sem condições sanitárias que garantam a segurança da saúde das pessoas. Esse entendimento da educação como uma atividade essencial tá relacionado com o fato da Organização Mundial do Comércio ter definido a educação como um gênero de serviço: uma mercadoria, assim como agora tudo tá virando mercadoria. E o aluno passou a ser o quê? Um cliente. Enquanto os cursos ministrados são tratados como produtos que têm que estar em sintonia com as demandas do mercado. Uma lógica que atende ao interesse do setor privado e as fundações, institutos, editoras, que se colocam como tutoras das escolas públicas, estão tomando a educação como atividade essencial dentro de um sentido ligado a esses interesses mercantis. E essa palavra “essencial” vem como um ardil pra impor esses interesses dominantes.

E a motivação disso não é considerar a educação como atividade essencial tal qual nós pensamos a essencialidade dela. É lógico que a gente entende que a COVID-19 está trazendo um enorme prejuízo pras nossas crianças e jovens em relação à educação, só que essa PL 5595 quer reativar a economia a todo custo para quê? Para fazer circular as mercadorias e continuar a máquina da produção dos lucros.

O Ministério da Educação promove regressões e constrangimentos aos educadores, estudantes e escolas em geral, restaurando concepções arcaicas e irracionais mesmo no plano das ciências da natureza, como uma forma de banalizar a ignorância. Tudo no sentido de conformar os alunos a serem consumidores dispostos a colaborar com esse reinado do mercado.

Há um trecho do livro do Lukács “Introdução a uma estética marxista” em que ele narra os apaixonados conflitos em torno da teoria de Copérnico que levaram Giordano Bruno à fogueira e Galileu à inquisição. Se a  ciência deve ou não ter o direito de investigar sem preconceito todas as coisas, mesmo que os seus resultados não concordem com os dogmas da religião – são  discussões ideológicas entre o feudalismo caduco e a burguesia ascendente. Atualmente é semelhante ao que Lukàcs coloca.

São processos que se mostram necessários para responder ao aprofundamento da crise capitalista em esfera mundial. Estamos vivendo situações limites em que essas agressões também se estendem ao planeta: o desmatamento, os efeitos nocivos de monoculturas, a problemática das guerras… E nesse contexto grave vem os problemas do mundo do trabalho com a reforma trabalhista de 2017, a produção do desemprego com o sentido perverso de fazer com que os trabalhadores se submetam a condições precaríssimas de trabalho e a não reagirem à liquidação da legislação protetora do trabalho. Então toda a sociedade entra em crise. O trabalho entra em crise. Então tudo isso faz o quê? A educação entrar em crise, a cultura entrar em crise, o direito ao conhecimento entrar em crise.

Porque a educação pressupõe uma relação muito próxima com o mundo do trabalho: “formar” as pessoas. Como é que a gente forma os jovens para esse contexto? A crise social fortalece essa política anti-cultura, anti-educação, do Ministério da Educação. Para esses trabalhadores basta fornecer saberes utilitários descartáveis, apoiados em evidências rotineiras, adaptados para contexto tecnológicos muito delimitados, e de rápida obsolescência. A precarização do ensino é acompanhada pela expansão do ensino à distância. Com isso as grandes firmas de tecnologia podem obter seus lucros e o estado também poupa porque pode dispensar uma série de professores. Os conteúdos são alvo. As humanidades são as mais prejudicadas. Mas as ciências da natureza também são atingidas.

A questão do currículo também está dentro de um contexto em que é preciso para o neofascismo destruir formas críticas de pensar, e fazer com que o ensino e aprendizagem da massa dos alunos das camadas populares seja o ensino da ignorância, a diminuição da  qualidade civilizatória das gerações, a destruição da escola é que está em jogo e de todas as formas possíveis.

O direito à cultura e à educação é fundamental para priorizar a resistência a essa destruição social.  Educar por meio do juízo crítico. Oferecer bases científicas sólidas, capacidade argumentativa, enfim desenvolver a capacidade da resistência intelectual às manipulações midiáticas. O exemplo das fake news é cabal. As pessoas são manipuladas por essas estratégias. É fundamental fortalecer essa capacidade de reflexão e de juízo crítico. Pra isso é necessário implementar projetos democráticos, inclusivos e plurais. Coisa muito distante do que o atual Ministério da Educação está providenciando. Enquanto protegem um determinado setor educacional destinado a formar elites científicas, técnicas, gestionárias, onde os filhos dos porteiros, das empregadas domésticas, e dos trabalhadores em geral, não podem entrar.

Está muito evidente a estratégia de rebaixar moralmente todos os que ensinam. A ideia deles é reeducar os professores pois os professores precisam aprender a trabalhar de outro modo. Militarizar as escolas. Fazer as parcerias com os empresários. Ao lado do corte de orçamento, que agora se tornou muito mais forte. É um projeto. Um projeto de política educacional de liquidação do direito ao conhecimento para a produção de pessoas com conhecimentos precários. É uma guerra contra as classes populares.

Edição/resumo feito por Maria Rita Nepomuceno sobre o depoimento da Prof. Lucília Machado, durante o encontro ‘O direito ao conhecimento e a anticultura no Ministério da Educação’. Maria Rita atua na área de criação e curadoria em audiovisual e apoia os Estados Gerais da Cultura.

 Lucília Machado é pós-doutora em Sociologia do Trabalho, doutora e mestre em Educação, graduada em Ciências Sociais, é professora titular aposentada da UFMG.

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