Carta de Princípios

Obra apresentada na Bienal de Veneza 2015. (Basílica San Giorgio) Mist – Jaume Plensa foto por Mari Weigert

Uma elite gananciosa que quer tudo para ela e nada para o povo. O povo vive mal, frequenta um SUS fragilizado há anos e escolas ineficientes, fruto do congelamento de investimentos públicos. A arte, a cultura e a ciência estão condenadas pela censura econômica e política e por uma doutrina terraplanista.

Volta Galileu e vem educar esta gente!

O gesto de extinguir o Ministério da Cultura representa a tentativa de destruir nossa superestrutura cultural e ideológica para fragilizar-nos como nação. Um país não se limita às suas fronteiras físicas e geográficas. Ele é composto pelas línguas que abriga, pelos hábitos, costumes culturais, por suas tradicionais, crenças, conhecimentos.

Somos milhões de trabalhadores da cultura paralisados, dispersos ou desempregados. O governo flerta com o totalitarismo e nos intimida com o poder miliciano.

Estamos vivendo uma das maiores crises sanitárias de todos os tempos. Pandemia trágica para milhares de famílias brasileiras, em especial para as mais humildes, completamente abandonadas pelo poder central.

Recolhidos em nossas casas, velhos e novos filmes, músicas e atividades artísticas nos fazem companhia nessa solidão imposta pela pandemia. Nesse momento, as pessoas percebem a importância da arte em suas vidas.

Queremos um mundo em que o Estado seja voltado para o bem-estar de seus cidadãos e cidadãs, ou que seja voltado para facilitar a acumulação de bens de uns poucos milionários? Qual será nossa relação com a natureza, convívio harmônico ou de desenvolvimento predatório como tem sido até agora?

O futuro é nosso, cabe a nós decidirmos

‘Estados Gerais da Cultura’,movimento coletivo, autônomo e independente, existe para ajudar a construir o nosso futuro; sermos os verdadeiros protagonistas da nossa História.

Que futuro queremos no mundo que emergirá do pós-pandemia? Um mundo solidário em que a centralidade seja o ser humano e a natureza ou continuaremos reféns do cassino financeiro? A reconstrução do Ministério da Cultura é apenas um primeiro passo necessário para o restabelecimento da nossa unidade como agentes culturais.

Hoje,vivemos todos intimidados assistindo ao desmantelamento da Cinemateca Brasileira, matriz da memória imagética do país; desmantelamento da Casa de Rui Barbosa, importante centro de documentação, pesquisas, reflexão e documentação; intervenção no IPHAN permitindo a degradação do nosso patrimônio arquitetônico a serviço da especulação imobiliária; o silenciamento da FUNARTE e das suas atividades ligadas às artes plásticas, dança, fotografia; e a Ancine, com o sequestro do FSA-Fundo Setorial do Audiovisual, deixando a atividade quase que totalmente paralisada.

Hoje, somos milhões de trabalhadores desempregados num setor que gera arte, cultura e entretenimento, além de dividendos para o país. O Ministério da Economia é incapaz de enxergar a indústria criativa como um setor altamente rentável, que gera recursos e prestígio internacional para o Brasil, através da presença em premiações, mostras, festivais, encontros e congressos.

A reconstituição do Ministério da Cultura como Organismo de Estado, independente da ingerência de governos, é URGENTE e NECESSÁRIA. Muitos nos perguntam como isso será possível diante de um governo como o que temos. Qual a possibilidade concreta de sairmos vitoriosos neste embate?

Respondo: homenageando Therezinha Zerbini e dizendo que lutaremos com a mesma humildade e tenacidade que a levaram à luta pela Anistia no auge da ditadura, ou a lucidez que levou o jovem deputado Dante de Oliveira a lutar pelas Diretas Já.

Somos artistas, sabemos fazer arte e nos comunicar com o público. Essa é nossa especialidade. Cada um da sua forma, com a técnica e a estética que tiver à mão, saberá falar da importância da nossa luta: fazendo teatro na rua ou na rede, filmes que viralizam nas mídias eletrônicas; grafitando, se apresentando nos metrôs,  nas comunidades ou onde for, combateremos a política de terra arrasada e começaremos a construir um mundo novo.

A reforma trabalhista, que nos prometia milhões de empregos e gerou milhões de desempregados, além do enfraquecimento dos sindicatos e da perda dos direitos dos trabalhadores, o enfraquecimento da previdência. Só cortaram direitos dos mais pobres, preservaram os privilégios dos mais ricos, o que nos leva a temer pelo nosso futuro.

Pensemos no ano de 2022, não pelo processo eleitoral que vai se estabelecer, mas pela comemoração do bicentenário da Independência, pelo centenário da Exposição Universal e pelo centenário da Semana de Arte Moderna que projetaram o Brasil no século XX.

Nós, trabalhadores da Arte e da Cultura, juntos com historiadores, sociólogos, geógrafos, sindicalistas, militantes comunitários, de gênero, e de quem mais quiser tomar seus destinos nas próprias mãos será bem vindo.

Portanto, conclamamos a todos: com arte, ciência e paciência, mudemos o mundo.

A convocação do Estados Gerais da Cultura tem como objetivo colocar na mesma sala, de forma espontânea, pessoas das mais diversas áreas de atuação do conhecimento interessadas no avanço rumo a um futuro de bem- estar social para todos, tendo como alavanca a ação artística e cultural.

Sim, convocamos a todos para ser protagonistas da nossa própria História, através de filme, peças de teatros, esquetes, lives, virais, memes, músicas, grafites, proteção dos nossos biomas. Tudo o que as ferramentas tecnológicas nos permitem utilizaremos como instrumento de conscientização, luta e fortalecimento respeitando as nossas tradições e nosso patrimônio étnico-cultural.

Como disse o jornalista italiano Walter Veltrone, o passado é confortável, mas o único lugar que nos abrigará é o futuro. Assim, que o façamos justo e prazeroso para todos. Com arte, ciência e paciência construiremos um mundo melhor. 

Texto: Silvio Tendler e EGC

(Esta carta foi lida no primeiro encontro dos Estados Gerais da Cultura. Por ocasião da convocatória.)

*Imagem – Mist – Jaume Plensa. Bienal de Veneza 2015. (Basílica San Giorgio) foto Mari Weigert