“O futuro é algo que faz com que a gente não se comprometa com as coisas ao nosso redor”

Daniel Munduruku. Foto Maira Mago/2009 – Por “Isto é Independente”

Essa ideia do bem viver está muito presente nas populações indígenas. É um conceito que nasceu na América Latina e que tem a ver com a compreensão de um tempo circular, que vai construir um modo de existir que tem a ver com parentesco, o parente cuida do parente… Uma amiga pesquisadora chamou isso de “pedagogia do parente”: esse olhar pro mundo a partir da ideia de que nós somos parte de uma grande teia. Todos somos parte do mesmo mundo e temos que estar atentos para não destruir a teia. O sistema cosmológico que a gente entende existir.

“Hoje é domingo, domingo eu não choro, domingo eu não sofro… Se o amor quer me deixar, me deixe no domingo” – *Maria Bethânia interpretando composição de Roque Ferreira

Dormir na rede é uma filosofia. Levar uma vida mais coletiva. Os povos indígenas trazem um conhecimento tão importante para a gente tirar da vida experiências e sabedorias. Porque afinal de contas é o que mais interessa, nossa realização como ser humano, individual e coletivamente. Atentos e olhando pros lados, isso faz com que a gente não solte a mão de ninguém. E leve uma vida coletivamente mais digna

Assim são as placas que delimitam a Terra Indígena Sawre Muybu, dos Munduruku. Foto via Conexão Planeta

Um milhão de pessoas vivendo em contexto tanto de aldeia como urbanos. 305 povos, 274 línguas. Essa diversidade já foi muito maior. No século XVI éramos 5 milhões. Cerca de 1000 línguas. Quando chegaram os alienígenas. A História foi apagando a presença desses povos, suas vozes… Foram muito usadas. Sempre resistiram mas foram vozes vencidas. E a História acabou sendo contada pelo vencedor, pelo colonizador. Quem conta um conto, aumenta um ponto… A História do Brasil teve muitos pontos, quem contou, contou favoravelmente a si. Um grupo que vem fazendo manobras para sempre se manter no poder, silenciando outras vozes e toda vida, física e simbólica, que essas vozes carregam consigo.

Os povos indígenas aprenderam nos últimos 3 mil anos a olhar para o mundo e para si mesmos tentando dar respostas às angústias que todo ser humano tem.  Não são passivos. Têm uma consciência muito clara de que é preciso lutar para manter sua cultura porque ela que é contrária à visão maniqueísta ocidental que defende o egoísmo, a disputa, que a gente precisa progredir pra satisfazer a nós mesmos e acumular riqueza. Isso se dá por conta dessa visão de tempo que nós temos. Como cada povo pensa o tempo. É aí que mora a grande incompreensão sobre as sociedades indígenas.

O Tempo

Foto de Claudia Andujar. Mostra sobre Indígenas – especial Yanomami GaleriaI Inhotim foto via Pan-horamarte

O tempo ocidental é um tempo linear, que “anda pra frente”. O passado vale muito pouco, o presente é um corisco de um relâmpago. O que mais interessa ao mundo ocidental é o que ele não tem, é o que ele chama “futuro”. É o tempo do relógio, que sempre anda pra frente. Da riqueza, da produção, do acúmulo, o tempo de correr atrás do tempo. É o que nos ensinam nessa sociedade em que tempo é dinheiro.  Educamos a criança assim, Perguntamos às crianças: “O que você vai ser quando crescer?” Considerando que ela não é nada. Ela é um projeto. Se tornará algo se “for alguém na vida”, tiver um império, patrimônio, status social… Para chegar nisso, o Ocidente tem uma trajetória que ele vai estimulando, de formação, de corrupção das pessoas, “os fins justificam os meios”. Nós só podemos ser felizes amanhã. A escola de hoje é a escola que prioriza a ideia do futuro, do amanhã, o investimento que os pais fazem nos filhos. O futuro é algo que temos que colocar como objetivo, que temos que alcançar, e isso faz com que a gente não se comprometa com as coisas ao nosso redor.

O tempo indígena é o tempo circular. O tempo da natureza. E ela não anda pra frente. Ela anda sobre si mesma, “pra trás” nesse sentido. “Natura non facit saltus”. A Natureza não faz saltos. Ela não vive o tempo pensando no que vem pela frente. Ela vive o tempo onde ela está. O inverno não precisa ser outra coisa a não ser inverno. Ele não tem saudade do outono que se foi.  Os indígenas seguem a lógica do tempo da natureza. A partir desses olhares sobre a natureza. Ela não dá saltos. Ela precisa respeitar a si mesma para continuar existindo. Ela precisa viver plenamente o tempo, das estações, da reprodução… Os animais, as árvores, precisam de um tempo. E o indígena sabe que ele também precisa desse tempo. Ele vai percebendo que a natureza também organiza sua vida como se fossem estações.

A gente olha apenas o passado e o presente. Entre os indígenas não existe a palavra futuro. Eles nomeiam as coisas a partir da experiência vivida. Como não se experimentou o futuro, não existe uma palavra que o nomeie. Não existe essa ideia de futuro. Claro que cada povo tem a sua dinâmica de compreensão cosmogônica. Mas costuma ser assim. O passado é fundamental porque é o tempo da memória, é essa memória que vai dizer quem eu sou e o que eu faço nesse mundo. Sem apressar, sem querer dar salto, mas se percebendo parte da natureza. Uma visão que olha pra trás. É esse passado que nos impulsiona para frente, para aquilo que há de vir. O indígena nunca pergunta para uma criança sua, pois de antemão ela já sabe que essa criança não será nada, porque ela já é tudo o que ela deveria ser. Porque ela é criança, e precisa viver essa estação plenamente. Brincar.  Quando a uma criança indígena foi perguntado o que ela queria ser quando crescer, ela respondeu “avô”.

Educação

Claudia Andujar – Galeria Inhotim via site Pan-horamarte

A sociedade toda é educadora. Cabe aos pais e à sociedade oferecer todas as condições para que a criança seja plena, que o adolescente seja pleno, para que ela não sinta falta de ser criança e não seja um adulto antes da hora. Porque já já ela vai ter um rito de passagem.. Porque mais tarde ela será um pai e um avó que tenha vivido todas as estações para ser o conselheiro e o sábio de sua cultura. Que cada estação seja vivida com plenitude. Isso cria uma responsabilidade. Para que cada pessoa viva o seu presente.

Meu avô dizia sempre: “Se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente”. O presente como tempo e o presente como dádiva. Quando a gente ganha um presente nós temos a obrigação de usá-lo imediatamente. Os avós justificam que é o único momento que aquele que te ofereceu aquele presente vai ficar feliz de verdade, porque vai saber que você gostou do que recebeu. Cabe ao avô educar. E ele educa as crianças. Cabe educar o corpo das crianças, o princípio de sobrevivência: plantar, caçar, subir na árvore. E a educação do espírito. O que é isso? Dar sentido à existência.

No reino da natureza, o ser humano talvez seja o mais incompleto, todos os outros vieram completos, ele tem mais necessidade de dar sentido à sua existência. Como? Nas histórias narradas pelos ancestrais. A criança vai aprendendo o que fazemos nesse mundo e a resposta simbólica à existência é coletiva. Não se trata apenas dos indígenas brasileiros. Essa sabedoria está na constituição do ser humano. Desde que ele vai se compreendendo no mundo de acordo com o tipo de sociedade. 

Marco Temporal

Foto via site De olho nos ruralistas

O Marco Temporal é um instrumento legal que vai praticamente oficializar o genocídio das populações indígenas. Os indígenas estão lá em Brasília se sacrificando. O que afeta a Terra, afeta os filhos da Terra. Quando a gente não se considera filho, a gente olha a árvore e vê lucro, não vê um irmão. Essa sociedade cria essa tipo de entendimento sobre o território e vira um objeto, vira posse… Quando eles dizem “os índios são os verdadeiros donos do Brasil” eles usam essa mesma concepção cultural de posse. É uma forma de jogar a sociedade brasileira contra os povos indígenas. Essa luta indígena é para defender o território. O mundo todo está pedindo para o Brasil resgatar essa ancestralidade.  Não tem a ver com um tempo específico como querem os reguladores do Marco Temporal: “a terra é só para quem estava aqui em 1988…” Uma lei não pode estar acima da vida simbólica dessas populações.

Os indígenas são contemporâneos. Estamos aqui e agora. Muitas das incompreensões tem a ver com essa ideia que o indígena é escravo do passado, um ser atrasado, condenado a viver no passado. E a cultura é dinâmica. Está em constante transformação. Nós podemos sim utilizar todos os instrumentos que essa sociedade e a ciência tem e esse uso não nos torna menos indígenas. Podemos usar sem abrir mão da nossa ancestralidade. “Posso ser quem você é, sem deixar de ser quem eu sou”, como diria o movimento indígena ali nos anos 80. Nós precisamos revisitar e olhar o tempo inteiro para essas ideias de indígenas que foram colocadas dentro da gente. Foram criados dois índios dentro da gente que a gente não consegue se libertar com facilidade.

Esterótipos

Claudia Andujar – Galeria Inhotim

Um é o índio romântico. Do dia 19 de abril. Celebrado nas escolas. O índio do século XVI. Fictício. O índio vira folclore, porque é pensado na memória a partir de um tempo. E ele ficou preso nesse tempo como um personagem. Essa ideia do índio folclorizado é uma ideia que é repetida à exaustão na nossa sociedade e que acaba fazendo morada no coração das pessoas graças ao trabalho da narrativa dos vencedores que foi se impondo e acabou se estabelecendo na gente como uma tatuagem ancestral que está dentro da gente.

A outra visão é mais ideologizada. De que índio é preguiçoso. Que tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. Que índio bom é indio morto. Para justificar junto à opinião pública porque não precisa demarcar as terras indígenas… Porque precisa fazer eles se tornarem “civilizados”, como diz atual o presidente ressuscitando uma ideia que é muito forte no inicio dos anos 70 “de que os índios precisavam se tornar brasileiros para terem direito à cidadania”. Tem a ver com uma politica integracionista que vem sendo ressuscitada para justificar a falta de política ambiental que seria a não demarcação do território.

Essa visão ideologizada da desqualificação, e a do índio idealizado, vivem muito dentro da gente. Ela não está falando de um índio que é o seu contemporâneo. Quantas vezes eu ouvi “eu esperava um outro índio” quando chegava para dar minhas palestras. Um índio que foi pra universidade, fez doutorado… “Ah, então ele não é mais índio de verdade, ele é um dos nossos, ele se modernizou!”. As pessoas não se dão conta que estão pensando como um colonizador, que elas aceitaram esse pensamento colonizador.

Grande Teia

No meu livro “Catando piolhos, contando histórias”, quando eu me refiro a essa ideia de catar piolho,  é uma proposta de pedagogia porque catar piolho é uma forma de trazer a cabeça pra junto do seu peito. E você só dá a sua cabeça a quem você confia. É também uma forma de interação com quem a gente aprende a confiar e crescer junto. Sem precisar que as riquezas sejam individuais. Uma ideia do coletivo que se realiza quando todos têm abundância. Quando todos podem correr, ter um rio, uma casa… Uma educação da acolhida, do respeito, do coletivo. Não quer dizer que os indígenas são perfeitos. Eu estaria fazendo a mesma afirmação daqueles que pensam o índio como sendo o bom selvagem que vive no paraíso.  Porque onde tem gente, tem conflito. Estou dizendo que essa populações encontraram um jeito próprio de resistir, um sistema próprio para resolver esses conflitos. Relações de crença, espiritual, social, política também.  A história do índio genérico, como sendo uma coisa só, também tem que ser combatida. Nós somos diferentes uns dos outros. Mas temos pontos em comum como a ideia de que somos parte de uma mesma teia da vida.

Você pode encontrar a obra “Catando piolhos, Contando histórias” através desse link, Livraria Maraca assim como outras obras do escritor com 20 anos de produção e de outros autores indígenas

Ideias de Daniel Munduruku editadas pela cineasta Maria Rita Nepomuceno, que é integrante do coletivo Estados Gerais da Cultura e atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

Um comentário sobre ““O futuro é algo que faz com que a gente não se comprometa com as coisas ao nosso redor”

  • Maria Rita
    gratidão pela síntese. ouvindo Daniel nos Estados Gerais da Cultura muito me emocionei extraordinário trabalho e reflexão
    das mais relevantes nestes tempos que estamos vivendo no planeta e no Brasil.

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