O encontro entre Padre Julio Lancellotti e o Pastor Henrique Vieira superou expectativas e trouxe para os seguidores dos Estados Gerais da Cultura momentos inspiradores sobre espiritualidade, luta e reflexão. O tema instigante, ‘Lucidez não ocorre sem conflito’ começou com uma homenagem ao autor do Estatuto do Homem, um dos mais influentes e respeitados poetas no país. “Abrimos o encontro homenageando Thiago de Mello, que completa 95 anos, ao reproduzir um trecho do poema, Faz escuro mas eu canto, declamado por ele mesmo”, destacou Silvio Tendler ao abrir o encontro. “Um poema dito num momento de extrema dificuldade que estamos vivendo é muito alentador”.
Faz escuro ainda no chão
Mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.
Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar a solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
Agora vale a alegria
que se constrói de dia,
feita de canto e pão.
Madrugada da esperança,
faz escuro (já nem entanto),
vale a pena trabalha.
Faz escuro mas eu canto
Porque a manhã vai chegar.
(Thiago de Mello)
Para completar a beleza do encontro, a fala de Eduardo Tornaghi sempre é um convite à reflexão com mais poesia. As poucas palavras tocaram fundo quem a escutou. Tornaghi começou lembrando do papel de Silvio Tendler na criação do coletivo Estados Gerais da Cultura e a importância da própria cultura como base de tudo.
“É a cultura que é o elo entre nós, que nos faz ficar juntos e ser humanos. Por isso, precisamos do Ministério da Cultura. Se o Estado não faz, nós fazemos e queremos criar em rede esta lembrança. Hoje temos o Padre Julio e Pastor Henrique, duas pessoas que militam na prática dizendo que lucidez não ocorre sem conflito, é verdade. Mas conflitos também não se resolvem sem lucidez. Para isso temos gente como eles, que vão lá e colocam a massa e aprendem qual é o problema para nos dizer e para isso temos os poetas antenas.”
Escrevi assim:
Vizinhança!
As janelas de hoje são acidentes no cimento. O foco é no que fecha. Perto só parede. Gente só de longe. Vida só de viés. Outro é outrora. Encontro é tropeço. O medo manda. Fuga e fluxo. O futuro faz-se nas janelas de hoje. Mas…. é o desconforto que nos move. Esse mas….. é porque quero seguir com o poema de Ferreira Gullar, chamado:
A VIDA BATE
Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
Essas poesias mantras foram colocadas para iniciar o debate com dois religiosos que fazem a diferença no dia-a-dia de quem vive à margem da vida. Praticam na plenitude o amor ao próximo. Lucidez não ocorre sem conflito