‘Lucidez é transgressão neste momento. De que lado você está do conflito?’

foto retirada do video Youtube/ Encontro EGC

Qual é o ponto que orienta a tua vida? Para dar lucidez você precisa ter uma luz. O que é que ilumina? Quais são os seus critérios éticos, quais são os seus critérios de humanização.

Lucidez é, nesse momento da História, nessa cultura que vivemos, é transgressão. Não tenham medo de lucidez transgressora, que essa é a lucidez que nós precisamos e devemos de ter nesse momento.

Então muito bom ouvir tudo isso que nos disse o Pastor Henrique que trás pra nós o compromisso de lutar e nós não podemos, em nome de um pacifismo, ter medo da luta e ter medo do conflito. Nós vivemos uma realidade conflitiva, a nossa pedagogia de conflito está presente. A pastoral, dizia muito o Padre Libanio, é uma pastoral do mundo de conflito, e quando você está num mundo de conflito você tem que ter lado. De que lado você está do conflito?

E eu acredito que o Pastor Henrique já deixou bem claro pra nós de que lado nós estamos. Eu lembro muito aquilo que nos disse o Leonardo Boff: “todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto”. Então é isso que é preciso: você é Pastor a partir de que ponto? Você é o Padre a partir de que ponto? Você é o intelectual, é o artista, é o que resiste, o que luta, a partir de que ponto. Qual é o ponto que orienta a tua vida? Para dar lucidez você precisa ter uma luz. O que é que ilumina? Quais são os seus critérios éticos, quais são os seus critérios de humanização.

E a lucidez é muito ligada ao discernimento. Nós vivemos num momento tão atormentados de informações, de fakenews, e uma mídia muitas vezes comprometida, não poucas vezes, comprometida com o poder, com o poder político, com o poder econômico, que as pessoas não são capazes mais de discernir, de discernir pra fazer escolhas. Eu lembro muito o que Padre Jose Pamblan, é um grande teólogo da libertação, belga de nascimento, foi expulso do Chile, foi expulso do Brasil, morreu aqui no Brasil, no sertão da Paraíba, e ele dizia: “se você não tiver liberdade de escolher, se você não puder escolher, você não consegue exercitar a liberdade. A liberdade é um exercício. Assim como o discernimento é um exercício. Você precisa ter uma pedagogia de discernimento, uma pedagogia de perceber o sentido, a direção, o senso, pra onde você vai, o que é que você está construindo.

Pra que você tenha lucidez eu acredito que nós temos que ter o senso histórico, que a nossa luta é uma luta que se dá na História, não está ligada a minha intencionalidade, eu tenho que aderir a essa luta, mas ela é uma luta histórica.

Todos esses nomes que foram chamados, todos esses nomes que são lembrados, que são memoráveis, porque estão na nossa memória, eles mostram isso, eles demonstram isso: de que lado nós estamos, e que essa luta ela é histórica, ela vai sendo construída. Por isso a gente tem que ter bastante consciência de que nem sempre nós vamos ganhar, que muitas vezes nós vamos perder. Hoje na Liturgia Católica se leu A Paixão no Evangelho de Marcos, que é um Evangelho extremamente conflitivo, e é interessante que o Papa Francisco lembrou hoje no Vaticano que Jesus foi levantado na cruz para descer até os mais oprimidos.

Você tem que ler o Evangelho com os pés no chão. Você tem que ter os pés no chão da História. Você tem que saber a partir de que classe social você está lendo. De que grupo você está vendo e todas essas questões que são levantadas como de gênero, essas questões de identidade de gênero, as questões étnicas, as questões raciais. Elas todas são perpassadas pelas questões de classe. Então tudo isso tem que fazer parte desse conjunto que tira de nós esse fundamentalismo simplista e que nos leva a não ter medo de enfrentar os conflitos, de enfrentar situações, as mais difíceis, seja no interno das Igrejas e das Comunidades, seja na sociedade como um todo, na cultura, em todas essas dimensões da existência humana.

O conflito está sempre presente, todos os dias quando eu convivo com os irmãos e as irmãs de rua, se explicita, diante dos meus olhos, o conflito dos que estão descalços, do que estão sofrendo. A importância de nós termos a lucidez de perceber quanto que os oprimidos são coniventes com os opressores, quanto que nós temos que investir, trabalhar, nos comprometer com uma pedagogia libertadora.

Eu gosto muito, lembro muito e repito muito nas lives que tenho participado, a frase  e o pensamento de Simone de Beauvoir: “os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos”. E eu acredito que esse é um chamamento muito forte que a arte para a cultura, para a leitura, para toda a luta e a nossa postura de que há um conflito com os poderosos, mas há um conflito contra o pensamento dos poderosos que é colado na cabeça dos oprimidos, isso nós estamos vivendo nas nossas comunidades, no meio do nosso povo, de uma maneira, muitas vezes, dura demais.

Que o fundamentalismo ele é festejado pelos poderosos e os poderosos tem a artimanha de colar o seu pensamento na cabeça dos fracos, dos dominados e acredito que uma luta nossa muito grande é que a mulher não pense com a cabeça do homem, que o negro não pense com a cabeça do branco, que a criança não pense com a cabeça do adulto, que os pobres não pensem com a cabeça dos ricos, que os despojados não pensem com a cabeça daqueles que despojam. Eu acho que isso é uma luta muito grande, um desafio muito grande pra nós nesse momento.

A retórica do ódio ela está fazendo parte da nossa gramática, ela está sendo repetida e eu fico muito chocado quando vejo até um morador de rua com a retórica do ódio, como é que ele conhece, como é que na favela, na comunidade, como é que muitas vezes até dentro do cárcere.

Quantas vezes até a população negra que é tratada de maneira tão cruel pelo genocídio e pelo racismo, essa população, muitos ainda repetem essa retórica do ódio. Convencer nossos irmãos cristãos que são fundamentalistas que justificam o genocídio. Nós estamos num tempo em que essa questão da lucidez e do discernimento chamam demais. Vocês vejam o que aconteceu agora com uma mulher artista que, muito querida pelo povo brasileiro, e que externou uma posição em relação à população carcerária que causou um impacto.

É preciso que nós não tenhamos medo do impacto, não tenhamos medo do conflito, de desvelar esse conflito, explicitar essa lucidez é a explicitação desse conflito , é a explicitação dessa opressão que vai entrando na nossa cultura, que vai entrando na nossa racionalidade. Quando alguém responder pra você, diante de uma situação: “é lógico”, toma cuidado, porque aí tem problema. Quando alguém diz: “ah, você tem que se vingar”, é lógico; “ah, você tem que estar por cima”, é lógico. Cuidado. Tudo aquilo que faz parte da lógica da opressão, que faz parte da lógica da dominação que entrou em nós, nós mamamos muita vezes essa lógica no nosso leite materno, nós comemos dessa lógica no nosso alimento cotidiano.

Então nós temos que ter a coragem de desmontar a lógica da dominação, de desmontar pela lucidez a lógica da opressão. É o que há poucos dias causou muito impacto aqui em São Paulo quando diz “tira um prato de comida” que vai ver como que Padre Julio grita. Pára. Você tem que gritar mesmo! E não ter medo de incomodar.

E não ter medo de remover os obstáculos que nos atingem e eu acho que isso a gente tem que ter muita coragem porque você, eu como um padre, um homem branco, esperam de mim, determinados comportamentos, esperam de mim determinadas atitudes e eu tenho que romper com isso, ou esperam de um pastor que não diga nada disso que diz o Pastor Henrique. Esperam de um intelectual que seja dentro de normas e limites, de regras. E nós temos que ter a coragem de transgredir.

Lucidez é, nesse momento da História, nessa cultura que vivemos, é transgressão. Não tenham medo de lucidez transgressora, que essa é a lucidez que nós precisamos e devemos de ter nesse momento.

Trecho transcrito pela cineasta Maria Rita Nepomuceno da fala de Padre Júlio Lancellotti durante o encontro: Lucidez não ocorre sem conflitos. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual

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