‘Mais importante do que a crença religiosa é o amor como prática revolucionária’

Lucidez é um ato de reflexão intelectual, de lágrima existencial, e de atitude política revolucionária.

Lucidez é fazer arte engajada com sentido de democracia, de cidadania, porque toda arte deveria ser uma antecipação do futuro no presente

Obrigado ao Coletivo Estados Gerais da Cultura pelo convite para eu participar desse espaço e dividir a mesa com Padre Julio Lancellotti que é uma referência teológica, pastoral, política e existencial para minha vida, eu realmente já faz um bom tempo, olho para o padre Júlio como um recado de Deus, um sinal do reino de Deus entre nós, então eu fico muito feliz, muito grato, de participar desse espaço. Eu quero defender a perspectiva de que lucidez é enxergar o mundo a partir da ótica, da lente, da experiência e da luta dos oprimidos, isso significa ver a realidade com lucidez e atuar nela para transformá-la, sempre em prol dos oprimidos, sempre num processo criativo, construtivo de libertação e emancipação humana.

Então eu quero pegar um registro do chamado Canto de Maria que está lá no Evangelho de Lucas, capítulo1. Deixando evidente a minha perspectiva ecumênica, minha perspectiva inter-religiosa, minha perspectiva de celebração da diversidade, mais importante do que a crença religiosa é o amor como prática revolucionária, o amor que transforma a realidade, é o amor ético, político, relacional, o amor que se inquieta, se indigna diante de toda injustiça.

Então eu vou beber na minha tradição de fé, mas nessa perspectiva dialogal, aberta, ecumênica, inter e suprarreligiosa, bem, bebendo na minha tradição de fé, na espiritualidade subversiva, inquieta,  desobediente do evangelho, o Canto de Maria é muito interessante porque na narrativa lá do Evangelho, o anjo mensageiro de Deus vai na periferia e dá uma notícia a uma mulher numa sociedade patriarcal, pobre numa sociedade desigual.

Maria recebe a notícia de que ela estava sendo convidada  a gestar e a parir a esperança, o salvador, o messias. Então imagina só o caráter intrigante dessa cena, o anjo não foi a Roma, capital do Império, o anjo não foi à Jerusalém, o anjo não foi a grandes cidades, o anjo foi lá na periferia dizer para uma mulher, pobre, que ela era bem aventurada, que ela era lembrada por Deus, e que dentro do ventre dela estava para nascer uma esperança para o povo. Diante dessa notícia, diante desse convite, Maria adere, Maria confia, Maria crê e Maria canta, Maria produz arte, Maria produz poesia diante do seu emponderamento.

E no Canto de Maria, diante da visita do anjo, diante da sua adesão a essa convocação divina, Maria canta e o canto dela em um determinado momento tem um momento que ela fala Deus veio para destronar os poderosos, Deus veio para tirar a arrogância do coração humano, e atenção a esse final, que é nesse final que eu vou me fixar, Deus veio para exaltar os humildes, para encher de bens os que tem fome e despedir de mãos vazias os ricos. Uma mulher numa sociedade patriarcal, pobre numa sociedade desigual, moradora da periferia é lembrada e visitada por Deus.

Diante dessa epifania, diante dessa poesia, diante desse chamamento, diante dessa luz, desse brilho de esperança, Maria canta, produz arte, afirma, com seu corpo, com sua voz, a sua esperança!

E nesse canto ela está dizendo que a manifestação divina tem a ver com exaltar os humildes e destronar os poderosos, encher de bens os famintos e despedir de mãos vazias os ricos. Em outras palavras, ao que tudo indica, a manifestação de Deus revela e acentua determinados conflitos que existiam naquela sociedade, uma sociedade desigual, uma sociedade em que o povo lutava para sobreviver, uma sociedade em que a fome era uma realidade cotidiana. E ela está dizendo com seu canto, com sua poesia, com seu corpo, que a manifestação de Deus, a manifestação divina, a manifestação sagrada não é neutra, não é imparcial, não é uma igualdade que mascara as opressões.

Mas que a manifestação de Deus vem exaltar os humildes, encher de bens os famintos e despedir de mãos vazias os ricos, portanto a manifestação divina é uma manifestação que conclama a justiça, e justiça significa tirar dos opressores seus instrumentos de opressão, tirar dos opressores seus instrumentos de privilégio, tirar dos opressores seus instrumentos de poder. Justamente para que os oprimidos, os pequeninos, para que os mal tratados, para que os crucificados da história possam ter plena liberdade, vida abundante.

Pegando o Canto de Maria como referência e olhando para a História do Brasil, pegando o Canto de Maria como referência e olhando para o Brasil hoje, eu sou conclamado a perceber o mundo como um mundo que tem divisões que fraturam, divisões que machucam, divisões que maltratam. Nós estamos em um dos países mais desiguais do mundo, com a riqueza concentrada em poucas mãos enquanto milhões de brasileiros e de brasileiras passam fome, nós temos nas grandes cidades especulação imobiliária para valorização de imóveis enquanto milhões de pessoas moram de maneira precária ou estão nas ruas.

Nós temos no Brasil latifúndios improdutivos a perder de vista, especulação fundiária enquanto milhões de brasileiros não têm acesso a um palmo de terra para plantar e dali tirar o seu sustento. Nós estamos num país que durante quatro séculos escravizou o povo negro, e até hoje o racismo é um dado estrutural da nossa realidade, a cada 23 minutos, um jovem negro é executado, quase 60% do sistema carcerário é formado por negros ou por pardos, nós temos uma subrepresentatividade do povo negro no poder e nos espaços de decisão. A pele negra é culpada até que se prove o contrário.

Nós estamos num país em que as mulheres ainda são subjugadas, em que o estupro é uma cultura, fruto de um machismo doentio, nós estamos em um país em que a cada 28 horas um LGBT é executado, que a expectativa de vida de transexuais e de travestis é de 35 anos, por conta da precariedade, por conta da violência, por conta de um ambiente patriarcal, heteronormativo, baseado no ódio. Ou seja, um pais cunhado, forjado e formado em múltiplas opressões.

Lucidez é olhar para essa realidade fraturada e ter consciência formada a partir dos oprimidos, é ver a realidade a partir dos de baixo, é atualizar o Canto de Maria. Não há possibilidade de futuro democrático justo para o Brasil se a gente não fizer reparações profundas, se a gente não tocar em privilégios cristalizados, se a gente não repartir e dividir o poder, se a gente não fizer aquilo que é necessário.

E daí é muito importante perceber que neutralidade significa complacência, que neutralidade significa cumplicidade diante dessas opressões e dessas violências estruturais. Uma afirmação, Padre Julio, que sempre me chama muita atenção, “Somos todos brasileiros”, essa é uma afirmação curiosa, e ao mesmo tempo perigosa, porque “Somos todos brasileiros”, uma pretensa igualdade, protocolar, formal, bonita no texto, mas que não corresponde à realidade porque, conforme falei, determinados corpos no Brasil são pré-selecionados para a morte.

A cidadania no Brasil é uma cidadania que tem cor, a cidadania no Brasil é uma cidadania que tem CEP, a cidadania no Brasil é uma cidadania que tem gênero, a  cidadania no Brasil é uma cidadania que tem orientação sexual. Esse ainda é o país dos homens brancos ricos, ainda existe uma atualização da colonização. Estamos no meio de uma pandemia, diante de um quadro geral de desprezo, de genocídio, de mal trato sobre o povo e o que nos cabe?

Qual é a lucidez? A lucidez é o grito. A lucidez é a indignação. A lucidez é a rebeldia. A lucidez é a marretada do Padre Julio Lancellotti. A lucidez é a ocupação sobre o latifúndio improdutivo. A lucidez é a organização dos sem teto em prol de moradia. A lucidez é o movimento negro tocando na ferida do racismo estrutural. A lucidez é a revolta, a rebelião, a contestação das mulheres, tocando os nossos privilégios enquanto homens que na sociedade patriarcal tem privilégios garantidos e vantagens absolutamente resguardadas.

A lucidez é a heresia diante do fundamentalismo, quando o fundamentalismo pensa em monopolizar a verdade, lucidez é a heresia, é desvio, lucidez é a esquina, lucidez é a encruzilhada, lucidez é o terreiro, lucidez é o teatro, lucidez é a pintura, é o desenho, é o Canto de Maria. Então o que eu quero propor aqui é que Lucidez é enxergar o mundo a partir da lógica dos debaixo,  é enxergar a realidade a partir da experiência dos sem poder, é invadir e ocupar o centros do poder a partir do transbordamento e da rebelião das periferias.

Lucidez é fazer arte engajada com sentido de democracia, de cidadania, porque toda arte deveria ser uma antecipação do futuro no presente, talvez deveria ter aí uma relação entre arte, poesia e profecia, porque todas elas resguardam o futuro, e em nome do futuro, redimem o passado transformando a realidade do presente. Em tempos em que a naturalidade é odiar, lucidez é amar. Em tempos em que a naturalidade é se vingar, lucidez é perdoar. Em tempos em que naturalidade é uma união falsa entre desiguais, lucidez é acentuar o conflito para que uma verdadeira igualdade possa ser construída e forjada.

Quando eu falo conflito não é no sentido da vingança, não é no sentido de toma lá, dá cá. Conflito significa reconhecer as fraturas da sociedade, se colocar ao lado dos crucificados e dos pequeninos, para a gente produzir reparação. Nós só chegaremos à igualdade por meio da equidade. Ou seja, primeiro priorizando os de baixo, tocando em privilégios estabelecidos. Eu quero retomar aqui pra concluir esse trecho final do Canto de Maria porque é uma excelente notícia para os oprimidos. Exaltar os humildes e encher de bens os famintos. Mas olha a péssima notícia para os opressores e para os ricos: despedir de mãos vazias os ricos.

Aparentemente aquela mulher pobre e periférica da Palestina do Primeiro Século, visitada pelo anjo, percebeu que não há produção de justiça sem tocar em privilégios estabelecidos. Como Dom Hélder falou, quando dei comida aos pobres me chamaram de Santo. Quando perguntei porque tem pobre me chamaram de Comunista. Ou seja, socorrer as pessoas que estão em uma situação de vulnerabilidade, é fundamental porque quem tem fome, tem pressa. Mas, além disso, lucidez, além de socorro, é reparação.

Lucidez, além de assistência, é produção de justiça, e justiça não é vingança, mas é destituir os opressores do seu lugar de privilégio para que todos e todas possam ter vida plena e vida abundante. Exaltou os humildes, despediu de mãos vazias os ricos, tiveram uma perda, para que os pobres tenham plenitude, para que todos tenham o que comer, portanto gostaria de propor isso: lucidez é chorar a dor do mundo por enxergar na dor do mundo o nosso próprio mundo de dor.

Eu vou repetir isso:  lucidez é a capacidade de chorar a dor do mundo por ver na dor do mundo o nosso próprio mundo de dor. É quebrar a frieza, quebrar a indiferença, quebrar a lógica da meritocracia, do distanciamento hipócrita, e se envolver, e se engajar, é uma lágrima militante, é uma dor engajada, é uma paixão que se movimenta, é um sentimento que vira atitude. Como diz Paulo Freire: “esperança” não vem do verbo esperar, ficar aguardando, mas vem do verbo “esperançar”, ou seja, fazer a esperança acontecer e a gente faz a esperança acontecer com o Canto de Maria, a gente faz a esperança acontecer com arte, com poesia, cinema, com pintura, com literatura, com terreiro, com Igreja, com movimento social, com luta política, quando a margem ocupa o centro, quando a periferia impõe o seu lugar, quando os crucificados da História anunciam sua ressurreição.

Já que tá chegando a Páscoa, vou terminar com a metáfora: a cruz que é assumir a derrota dos derrotados e a ressurreição. Assumir a rebeldia contra tudo aquilo que mata. Melhor estar ao lado dos crucificados do que ao lado dos que crucificam.  Melhor anunciar a ressurreição a partir da margem do que namorar os protocolos do Centro. Portanto lucidez não é quietude diante da injustiça. Lucidez é no conflito ou na conflitividade da História, ver a História a partir das lentes de Dandara, de Zumbi, de Antônio Conselheiro, de João Cândido, de Irmã Dorothy, de Marielle, de Martin Luther King, de Malcom X, de Rosa Park, de Dom Helder, de Frei Tito, de Carolina Maria de Jesus. Hoje significa ver o mundo a partir daqueles que estão com fome, daqueles que estão nas ruas.

Lucidez é definir a nossa consciência e o sentido da nossa vida pela lente e pela experiência dos oprimidos, para, na crucificação com eles e com elas anunciar a ressurreição da esperança e a vitória dos pequeninos. Pra mim lucidez é um ato de reflexão intelectual, de lágrima existencial, e de atitude política revolucionária.

Trecho transcrito pela cineasta Maria Rita Nepomuceno da fala do Pastor Henrique Vieira durante o encontro: Lucidez não ocorre sem conflitos, do qual participou também Padre Júlio Lancellotti. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode usar estas HTML tags e atributos:

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>