Na Cidade Multicêntrica, Favela é Cidade

Morro da Favela -1924 / Tarsila do Amaral

Adair Rocha

Qual é a visão de política pública que está colocada? Dificilmente vai se encontrar pessoas no Leblon para articular e ver como é que resolve os problemas dos moradores dos territórios vulneráveis. O que significa essa grande parte da cidade? Estamos aqui hoje diante de dois intelectuais orgânicos, da cidade, que recriam junto e ao mesmo tempo coordenam esse processo da organicidade da cidade, essa discussão de que favela é cidade e da cidade multicêntrica. Mostrando como essa visão de centro e periferia, que sempre foi colocada, ela serve apenas pra reproduzir uma visão de que lá na periferia é que tá o perigo, é que tá o risco.

Que papel que o estado e a sociedade têm sobre isso?

Quando eu escrevi “Cidade Cerzida: a costura da cidadania no morro Santa Marta” eu falava nessa singularidade do Rio que é o que se pode chamar da “imagem invertida do espelho”, diferentemente das outras grandes cidades, aqui pra Leblon, tem Vidigal, pra Gávea e São Conrado, tem a Rocinha…e daí por diante. Essa cidade está muito mais costurada no dia a dia, no cotidiano mesmo. É só olhar o que significa a grande festa que a própria televisão transmite e retransmite pro mundo do carnaval. Se não é essa interação com a favela? O que significa o próprio conceito de carnaval, e a relação que isso tem com a História, que histórias são contadas, que enredos são esses?

A própria Lagoa, esse espaço tão caro nos mais diferentes níveis, tem ali no lugar da Praia do Pinto a Selva de Pedras, salva pela Cruzada ali. Da Praia do Pinto vai ter gente na Cidade de Deus, na zona oeste e tal. Por que será que se vê com tanta normalidade a existência da favela como um projeto urbano? Daquilo que foi a resistência, que foi a forma que todo mundo fez para poder se situar e viver na cidade? Aliás pelo apelo que o próprio crescimento econômico trouxe que fez toda essa passagem do rural pro urbano, e não é à toa que lá do lado do Porto que tá o Morro da Providência, e que providência é essa que foi tomada?

Essa construção da cidade, e essa normalidade, ela é fruto do processo de comunicação, de produção do imaginário. Como é que cada  noticiário fala da cidade: o quê que se fala do asfalto e o quê que se fala da favela? Que imagem que fica criada? Claro que a questão do risco, do medo e daí por diante… E transforma numa coisa normal que de fato a favela seja uma coisa que não tem o mesmo atendimento da cidade. Normaliza a incompletude do Estado.

Eu queria falar da importância do poder público: o quê que significa política de estado e o quê que significa as coisas que são feitas e que acabam no campo da assistência – mesmo que você tenha setores mais à esquerda, mais progressistas, no comando. Como é que essas coisas podem ser feitas? O que precisa ser cada vez mais buscado, é que você precisa fazer a passagem do quê significa apenas política de assistência pra política pública onde moradores de todos os lugares tenham a mesma possibilidade de acesso.

No caso do Rio que as principais escolas que dão acesso às universidades, os CAPs os Pedro IIs, que eles estejam também nos chamados “complexos”. Quando vai se falar de Ipanema, Copacabana, Leblon, nunca se fala Complexo Zona Sul. Mas a Maré são diferentes bairros chamados de “complexo”. Ali está o lugar do risco, esse imaginário que tá sendo produzido, ele normaliza a escravização, ainda hoje! É só olhar onde que a maioria da população negra está vivendo. E como é que a ideia de serviço, ou de baixos salários, ainda tá relacionada com as pessoas que moram nos piores lugares, do ponto de vista do acesso à coisa pública, e do acesso à moradia, e às coisas todas que ele tenha direito.

Essa concepção de segurança acaba ficando reduzida à polícia. Você cuida apenas da repressão. Cadê o cuidado com as pessoas que tão vivendo ali e que teriam o direito de viver, como todo mundo tem o direito de viver? Segurança é se você tem escola para os seus filhos, cultura, diferentes expressões, diferentes espaços onde você possa cuidar da sua saúde, não cuidar da doença, cujo resultado mais direto é a morte. Nosso grande psicanalista Hélio Pellegrino dizia para não se confundir o sintoma com a causa. Como se a favela fosse a causa da violência:  ela é o sintoma. Porque violência mesmo é sistematizar um processo urbano onde pra algumas pessoas há segurança, nesse sentido mais amplo, e pra outras a segurança é reduzida à polícia.

Como é que você tá falando de uma mesma cidade? Como é que é essa interação favela-asfalto? Nunca ninguém vai perguntar pelas outras interações dos outros bairros da cidade.

Aquilo da produção do imaginário acaba definindo muito essas interações – porque se dá de forma tão profunda no cotidiano: o morro desce todo dia e faz todas as coisas acontecerem. Numa produção de imaginário tal que uma família é capaz de deixar um filho com uma pessoa mas que se encontra na rua e tiver do outro lado da calçada pode correr o risco de esconder a bolsa. Que questão é essa que está colocada que traz essas contradições todas? Perceber essas contradições não é uma coisa da favela.

O asfalto entenderá o que significa a favela, no dia em que o morro não descer. Na verdade a favela já está dizendo o que é centro na cidade!

Fala de Richarlls Martins

A magnitude trazida pelo Censo, por uma aproximação que nós não teremos esse ano, mostra que no último levantamento de aglomerados subnormais do IBGE aproximadamente 17% da população fluminense reside nas favelas, ou seja, a gente tá falando de quase três milhões de cidadãos e cidadãs no Estado do Rio de Janeiro.

A gente fala de favela hegemonicamente a partir de uma vinculação pela lógica da segurança, não por uma perspectiva de pensar a favela pela lógica da política urbana, de direito à cidade e toda concepção de direitos humanos que se relacionam.

Isso é central no momento em que a gente tá vivenciando a impossibilidade de garantir políticas de enfrentamento aos efeitos da pandemia nos territórios de favela, a partir das evidências de seriam desproporcionais, essa articulação formada por instituições PUC, UERJ, UFRJ, Fiocruz, Abrasco e articuladores de territórios de favela, teve um papel muito central de diálogo com o parlamento fluminense, especialmente com a ALERJ, a partir de um diálogo de produção interinstitucional, com uma doação de 20 milhões de reais da ALERJ à Fiocruz. Essa é a primeira iniciativa de uma doação de um órgão legislativo para uma instituição para ações específicas de ampliação dos direitos humanos nas favelas. Esse recurso ele vai ser  80% direcionado para as organizações de favela, que atuam diretamente nas favelas, produzirem suas ações de enfrentamento à pandemia. A gente entende que a melhor resposta é você incluir os sujeitos na construção de ações de vigilância em saúde de base territorial.

Nesse momento o edital está com inscrições abertas, o prazo é até dia 29 de abril de 2021, a próxima sexta-feira. O edital aberto à organizações da sociedade civil do Estado do Rio de Janeiro, encontra-se no Portal da Fiocruz com uma dotação de 17milhões  para 170 projetos que tenham como objetivo enfrentar a COVID-19 nas favelas. 

A gente entende que essa articulação ela pode produzir uma ação de monitoramento e de centralidade da pauta da favela no interior das políticas públicas no enfrentamento da pandemia.

Acesso ao edital em: https://portal.fiocruz.br/se-liga-no-corona/chamada-publica-2021 

Fala de Itamar Silva

Quando a gente pensa na história da favela e na relação dela com essa cidade, objetivamente, a favela não só reinventa como ela redesenha a cidade, provocando a descentralização do centro. Não é uma questão sociológica, é uma questão física também.

Eu sou de um tempo em que eu dizia: eu moro no Morro do Santa Marta. Hoje, a favela virou uma marca pra todas as favelas. Mas eu gosto muito de fazer essa distinção porque tem a ver com a origem dessa cidade. Os morros são os lugares que não tinham nenhuma importância pro capital imobiliário, por isso foi possível ocupar a cidade pelas frestas, onde essa população estava protegida do olhar autoritário e do processo remocionista que funcionou muito fortemente entre os anos 60 e 70, principalmente na zona sul da cidade.

Hoje a gente fala de “complexos”. Então as pessoas moram no Complexo do Alemão, no Complexo da Maré, no Complexo da Rocinha… Qual é o significado disso? A cidade multicêntrica é porque essa disputa ela está justamente em não ter um ponto privilegiado, seja na zona sul, na zona norte, na zona oeste, na baixada… A possibilidade de construir vida, relações sociais e disputar sentidos na cidade, ela acontece de forma múltipla.

Mas qual é o lugar que as favelas ocupam no imaginário dessa cidade? É uma disputa em torno às narrativas que colocam esses territórios no lugar da pobreza absoluta, da marginalidade, da não possibilidade, e a resposta que esse território tem dado é exatamente o contrário.

As favelas tem dados respostas no campo da cultura, fazendo com que essas vozes consigam ultrapassar a barreira do preconceito, da imposição do gueto. Se vai falar de Brasil ou de Rio de Janeiro, indiscutivelmente você tem que falar do funk, do samba, não tem outra possibilidade. Mas ao mesmo tempo há uma permanência de uma negação da favela como cidadania. O número de mortes violentas pela polícia que acontece nas favelas é absurdo. Em nenhum outro lugar isso seria aceito passivamente pelo conjunto da sociedade.

Quando eu passo pela Lagoa, eu vejo ali o Parque da Catacumba e imagino o que seria daquele espaço se a favela não tivesse sido removida nos anos 60. Essa cidade seria muito mais rica e muito mais diversa se ela pudesse conter nesse espaço essa diversidade, garantindo ali qualidade de vida.

Essa reconfiguração a partir de 80 é uma reconfiguração mais evidente porque a gente consegue perceber a consolidação das favelas. Remove? Tem que construir uma outra cidade! Em termos numéricos elas são muito grandes, é impossível pensar. Em termos organizativos elas são muito fortes. Essa terminologia redutora das favelas como lugar da violência vai ganhando espaço na mídia nos anos 80, nos anos 90 está carregada com essa marca, e vai até os dias de hoje. Ao mesmo tempo que a gente vai acompanhar esse processo, dos mutirões, das associações de moradores, que nos anos 80 foram fundamentais para colocar a favela no centro da discussão pública… O favela bairro é de 1996, e é resultado do movimento de favelas.

Em meados dos anos 80 mudou a configuração do tráfico no Rio de Janeiro e o armamento ficou muito mais pesado. A vida ficou mais difícil. Mas ao mesmo tempo tinha nesse subterrâneo acontecendo o espalhamento da milícia. Isso foi denunciado. Teve várias CPI denunciando a questão da milícia. Mas institucionalmente… eu lembro do César Maia dizendo é preferível a milícia porque ela não permitia o consumo de drogas nesse território. Só que a milícia ela é uma dinâmica que se embrenhou pelo aparelho de Estado, não só está nos territórios, está no Legislativo, no Executivo… E tem assumido práticas muito parecidas com o próprio tráfico. Hoje é muito difícil você separar o que é uma prática de milícia e uma prática do tráfico. Ambas lidam com a exploração do próprio território, usam o território como escudo. Isso tem que ser enfrentado a partir do Estado pra que a gente tenha algum tipo de retorno de impacto nos territórios.

O Santa Marta teve um período em que tinha baile que vinha mil jovens da classe média. Mas quantas pessoas daquelas estão sensibilizadas pras dificuldades daquele território? Quantas são aliadas? Eu tenho muitas críticas a esse tipo de conexão. Mas também tenho a maior rejeição à abordagem de que os favelados sabem tudo, são bons, por princípio. Quem chega “eu não sei nada”… Não.

Cada um que chega de fora traz o seu conhecimento, a sua vivência, e é uma abertura ao diálogo. O quanto você está disposto a ouvir, a entender o outro e o quanto que ele também está disposto a ouvir e entender o que está chegando e fazer uma construção a partir desse encontro. Essa é a grande dificuldade. Porque pra isso você precisa acreditar que o outro tem capacidade.  Seja o de fora, seja o de dentro. A gente tem que ter coragem de produzir o encontro.

Eu não espero nada da elite brasileira. Eu não tenho mais nenhuma paciência. A mudança está acontecendo por iniciativa da favela. A favela não espera, ela está se impondo. Tem uma nova conformação de jovens reagindo, que batem no peito e dizem: “Eu tenho orgulho de ser favelado”. E faz disso uma militância política. Eu nasci no Santa Marta, eu fui pra universidade, eu era o único do Santa Marta na universidade. Eu não batia no peito: “Eu sou da favela”. Eu fui construindo essa minha percepção e essa minha forma de me colocar muito lentamente. Hoje a galera entra na universidade, encontra um coletivo de jovens negros e favelados e já vem com tudo pra cima. O acesso à universidade. A produção intelectual acadêmica a partir de intelectuais negros. O enfrentamento do racismo estrutural, e a denúncia das consequências disso sobre a formação da realidade brasileira, tem sido um elemento importante para esse fortalecimento de uma identidade local, seja da favela, seja da Baixada Fluminense, para a valorização do território como produção de conhecimento. Certamente tem outros elementos. Faz falta dialogar de uma forma menos pré-normatizada. Me senti muito bem e me sinto bem que existam espaços como esses aqui.

A gente precisa ter novas possibilidades de pensar a nossa cidade e com isso, colocar a favela onde ela merece, que é em todos os lugares.

Ideias sobre Cidade Multicêntrica apresentadas no 36o Encontro do EGC, com a edição de Maria Rita Nepomuceno.

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