Para além da pulsão de morte: a paz como utopia

Psicanalista Glaucia Dunley – assina este texto

Pergunto-me como pode a psicanálise, aliada à arte, à cultura, à ciência, à afirmação da vida, ao sim dionisíaco à vida de que nos fala Niezstche, desenhar como possível, concretamente, isto é, sem ilusões, um pensamento sobre a paz?       

Na vigência de um presente tão dizimador no governo bolsonaro, tão destruidor de nossas vidas, de nosso território, das grandes conquistas, dos sonhos, como pensar esta paz como objeto de desejo do sujeito e da comunidade planetária contra o fundo poderoso das pulsões de morte que nos habitam?           

Entendo a paz não apenas como um estado político de não-guerra, de paz civil, mas como um estado ativo e contínuo de resistência pacífica e culturalmente transgressiva por parte dos cidadãos de uma sociedade democrática, principalmente quando eles se encontram sob a opressão de um Estado de Direito não pleno nos governos de extrema-direita, como o nosso.            

Resistência ativa e criativa, criadora de pensamentos e práticas capazes de sobrepujar a violência em todos os graus, a crueldade que vem indissociavelmente ligada à pulsão de morte, e as suas inúmeras formas de sofrer e fazer sofrer – racismos, discriminação. desigualdade social, truculência policial, guerras neocoloniais e seus milhões de refugiados, genocídios sem fim, comandados pelo capitalismo neoliberal.           

Este longo durar, da ditadura do dinheiro, destrói principalmente nossos valores éticos, e nos oferece em troca o conforto do consumismo que entorpece e nos compra a alma pelo gozo de um pífio bem-estar, que ainda assim não cessa de esconder nosso mal-estar. Este bem-estar, este gozo do consumir e da alienação, jamais será um bem-viver, pois este, como nos ensinaram os gregos, pressupõe um campo de valores éticos. Esta ditadura do dinheiro também nos empobrece subjetivamente, tornando-nos banalizadores do mal ao permitirmos, sem fazer resistência, os avanços de uma ideologia global de mercado cada dia mais cruel, excludente das pessoas e expropriadora dos bens e riquezas dos povos.       

Resumindo, esta ideia de PAZ nos convoca eticamente ao melhor de nós mesmos como cidadãos planetários rapidamente mortais, haja vista a atual pandemia, mas me parece uma difícil conquista.          

É a PAZ uma utopia? Sim, é uma utopia. Uma utopia do comum, que nasce enraizada na triste realidade do presente, revoltada contra os malfeitos da globalização financeira, que vem se apossando mundo afora de territórios pirateados pela ideologia do “dinheiro puro”.  Ao que se somam os fanatismos religiosos, os atentados terroristas, aos êxodos de milhares de pessoas das guerras neocoloniais nos países africanos e do Oriente médio em busca de paz e vida digna em outros lugares, a exacerbação das desigualdades, aos genocídios dos descartáveis por políticas de Estado de extermínio, como em nosso país.                   

A história da humanidade se faz de repetição. Só existe o novo fora dessa cadeia de repetição automática própria à pulsão de morte quando surgem utopias, que são desejos coletivos, transgressões da ordem estabelecida, como o foram o repúdio ao imperialismo  na Revolução Cubana, “os 30 anos Gloriosos” que uniram liberalismo e social-democracia na Europa do pós-guerra.  Onde se queria o quê? A reconstrução dos Estados de tal forma que se tentasse estabelecer A PAZ de forma mais duradoura, mas que sempre dependeria do equilíbrio das forças em questão. No Brasil, tivemos a utopia dos governos do PT, barrando a fome, a miséria e diminuindo a desigualdade social, estimulando o acesso ao conhecimento e a cultura para todos.           

A ONU, fundada em 1948, é apenas um frágil dique contra os truculentos interesses financeiros e territoriais dos Estados- Nação, sustentados pela pulsão de poder ou dominação e de crueldade.  A ONU precisaria ser reforçada ou encharcada  com utopias do comum, que propusessem inclusive a perda progressiva dos privilégios ancestrais da branquitude eurocêntrica. Em fim, para construir a PAZ, faz-se necessária uma mudança de mentalidade dos povos e Estados, um pensamento novo, uma outra globalização não perversa, como previu e escreveu  o grande utopista-de-campo, Milton Santos.                   

Segundo Freud, a violência é estrutural e primordial. Somos descendentes de uma horda de assassinos que foram se submetendo muito lentamente desde o paleolítico aos interditos civilizatórios do incesto e do parricídio, dos quais frequentemente o homem escapa. Haja Lei e força de Lei para barrar essa “natureza humana” violenta e fratricida, mas haja também cultura para reconciliá-la com as renúncias aos desejos mais prementes que a sociedade humana é obrigada a fazer compulsoriamente para se submeter ao processo civilizatório.         

 A cultura é assim o campo de atividades humanas capaz de transformar o horror de nossa constituição violenta em belo, em sublime, em humor, em convivência pacífica e solidária.  A cultura e a paz são obras de Eros e combatem o culto da violência e da morte.           

Para finalizar, e indo mais longe nessa busca para fazer da paz uma utopia planetária possível, desejável e necessária, penso em Jacques Derrida. Ele propõe que caminhemos na direção de um mais além da pulsão de morte, na direção do impossível, lançando mão de uma ética que delineia no horizonte as figuras dos “incondicionais impossíveis”: o perdão, o dom, a justiça, o talvez, a hospitalidade, a amizade, a vinda incondicional do outro, os indecidíveis, a utopia, a paz como utopia, acrescentaria eu. E onde o impossível não é negativo, mas aponta para um outro eu, para um eu ético, que seria capaz de perdoar o que não é possível perdoar, de fazer dom sem esperar de fato retribuição, de desejar e lutar pela paz toda vez que o mesmo retornar – a guerra. 

  • Encontro com o antropólogo Luiz Eduardo Soares – Dentro da Noite Feroz – O Fascismo no Brasil.

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