A Flor e a Náusea

foto por Mari Weigert/2023

Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A nossa conversa é dedicada ao teatro neste 42o Encontro. Teatro acontece em tempo real.Teatro é aquele espaço onde se pode viver numa mesma situação e reagir juntos, descobrir quem são, o que pensam, como se sentem. É o lugar onde a gente cria a nossa mentalidade comum.

Teatro, a mágica! Ele diz aqui: Sob a pele das palavras, as cifras e códigos. Teatro é o lugar onde se decifram as cifras e códigos por trás das palavras. Teatro é ação. É uma coisa que acontece como a vida. é transformação. Que triste são as coisas sem ênfase. Teatro é onde você coloca ênfase e que permite enxergar o que é importante por trás do que aparece banal. Mas como fazer teatro sem poder aglomerar. O que significa um teatro em que eu rio e não sinto as gargalhadas à minha volta acomodando e aconchegando o meu riso, em que eu choro e me desespero e não sinto o tremor da plateia ao meu lado. Como fazer essa experiência viva a distância.

É isso é que vamos tentar responder hoje porque teatro é como essa flor. Ela nasce, ela atravessa a náusea o asfalto, enfrenta a polícia e nasce a cada vez para que a gente possa entender o que está acontecendo.

Pensata na voz de Eduardo e Tornaghi no tema Teatro Remoto e Resistência Artística.

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