SOS Cultura

Pela retomada do Ministério da Cultura (Manifesto da Associação de funcionários do MinC)

Um país que deixa de valorizar sua cultura perde a sua identidade. Ele se torna um país sem testemunho na história da humanidade. Voltemos nosso olhar para trás no tempo: a palavra “colere”, origem do termo “cultura”, já possui um sentido poético, de cultivar, colher, abarcar experiências do indivíduo, de um grupo social, de uma etnia, nas suas diversas manifestações, sejam elas espirituais, artísticas, ambientais ou sociais.

Nesse universo de saberes, um dos principais vieses da cultura é a arte, e é pela arte, a cada momento, que nos tornamos mais sensíveis para captar a beleza do mundo e de seus significados.

Por isso, é preciso entender que a cultura é protagonista, e não coadjuvante!

Ela é o espaço do diálogo, da construção e das ideias. Une pessoas; fortalece a identidade de uma nação; agrega valor econômico e sentido social. Uma sociedade forte é reconhecida pelos princípios de um ESTADO amplo e sustentável, e suas ações políticas têm a marca indelével de seus valores e tradições culturais.

O setor cultural é considerado estratégico para a economia em diversos países do mundo, pois gera empregos e impacto tributário. Os dados mais atuais mostram que as atividades culturais e criativas empregam no Brasil, somente em empregos formais, mais de um milhão de pessoas. Esse número, comparado ao de 2018, mostra um decréscimo assustador, mesmo que indiretamente. O Brasil, há pouco mais de dois anos, ocupava cerca de cinco milhões de pessoas no setor cultural, entre empregos formais e informais, o que representa 6% dos empregos gerados em território brasileiro. Os dados são da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios Contínua (PNAD contínua) e foram publicados no El País, em dezembro de 2019.

As atividades culturais e artísticas estão ameaçadas de desaparecer nos próximos anos, por falta de investimentos e de projetos para o setor. É urgente o resgate do Ministério da Cultura, com funções de ESTADO, seguindo as mesmas prerrogativas de órgãos como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público. A recriação do MinC irá garantir que toda a engrenagem do setor cultural volte a funcionar normalmente, com as suas instituições vinculadas e fortalecidas em suas políticas. Foram construídos, ao longo dos anos, a fim de reforçar os conteúdos do nosso patrimônio cultural e artístico: Iphan; Funarte; Ibram; FBN; FCRB; ANCINE; vinte e sete museus; vinte e sete superintendências; vinte e quatro espaços culturais; acervo literário; e centros de pesquisa.

Agora – e como nunca antes imaginado –, a música, a literatura, o cinema, as atividades artísticas e criativas estão sendo fundamentais para tornar mais lúdicos e prazerosos estes momentos tão difíceis de isolamento social em nossas casas, em função da pandemia.

Por essas e por outras questões, a cultura precisa estar pautada nas prioridades do governo; entre as ações mais importantes, deve-se retomar a discussão de um novo Plano Nacional de Cultura e realizar a efetiva implantação de um Sistema Nacional de Cultura. Não podemos retroceder e desconstruir tudo que está feito. Estamos no limiar de um novo ano que se apresenta desafiador, em razão do pós-pandemia; faz-se necessário manter, em 2021, o apoio emergencial aos profissionais que atuam no setor cultural, assim como garantir a manutenção das instituições e dos espaços culturais que tiveram as suas atividades interrompidas por força da pandemia. Precisamos de cultura, sim, e vamos lutar por ela!

A cultura é a memória afetiva dentro de cada um de nós; por meio da arte, a cultura atinge aquele universo onírico que nos remete a momentos importantes em nossas vidas. Todos nós, se vasculharmos o passado, vamos encontrar uma narrativa poética que envolve cultura e arte em nossas emoções cotidianas. PRECISAMOS DE CULTURA PARA CONSTRUIR UM MUNDO MELHOR! “

Cineastas publicam a Carta de Brasília

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro é o mais importante, mais antigo e mais político dos festivais brasileiros. A edição 2020 (quinquagésimo terceiro), realizada numa plataforma totalmente online, foi sinônimo de resistência, reinvenção e pluralidade. Ao final, o cineasta Silvio Tendler – curador e diretor artístico do Festival – divulgou a Carta de Brasília, pela qual todos os cineastas participantes colocaram em pauta importantes proposições para que o cinema brasileiro seja respeitado e preservado. Leia na íntegra abaixo:

Prêmios do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, os troféus Candago, em imagem de arquivo — Foto: Agência Brasília/Arquivo

21 de dezembro de 2020

O 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB), realizado à sombra de uma pandemia mundial, enfrentou adversidades para se realizar como havíamos planejado. Ele agora ocorre como um verdadeiro dever cívico de todos que se envolveram em sua realização, impedindo que o Festival fosse mais um na longa lista de eventos cancelados ao longo deste ano.

Da decisão de levar adiante o Festival até a sua plena realização, transcorreram 75 dias. Período em que o cinema brasileiro se uniu em torno desse evento. Nossos artistas, cineastas, técnicos, professores, pesquisadores e entidades representativas do audiovisual constituíram um fórum de debates cujo efeito maior foi mostrar a solidariedade, a força e a potencialidade da cultura brasileira, objeto do desprezo, da indiferença e do descaso do atual governo.

Neste ano, o ponto crucial foi justamente um painel do FBCB sobre a Cinemateca Brasileira e a emergência de não deixarmos nossa memória trancada na masmorra da negligência de uma necrofilia política.

O cadeado na porta da Cinemateca Brasileira é a metáfora de nosso país hoje. Nossa memória está sendo sequestrada e nosso futuro ameaçado. E nós, cineastas e profissionais da longa linha do audiovisual, diariamente construímos com nossas imagens essa memória fundamental para que o país se conheça, reflita e, sobretudo, aprenda com os acertos e erros do passado.

Para saber mais sobre o 53o.FBCB – de 15 a 20 de dezembro de 2020 – acesse este link.

“Os filmes morrem sem gemer”, disse o grande cineasta e ativista da política cultural Gustavo Dahl.  O 53° Festival de Brasília cumpriu a missão de gritar por eles.  A memória dos filmes não é somente objeto de referência. Segue essencial para a realização de novos filmes, de novas leituras, sempre prementes, da nossa realidade e da nossa constituição como nação.

Outro pilar singular deste Festival foi a recuperação de uma prática sócio-política-econômica pautada pelo humanismo.  A abrangência dos painéis captou os temas que mais afligem o Brasil e o mundo.  A presença do cineasta britânico Ken Loach, com seu cinema de combate às desigualdades, mostrou que, a partir do cinema, Brasília olha para a sociedade como um todo.

O Festival não ficou indiferente às questões identitárias, sanitárias e econômicas. Essa diversidade temática, aliás, esteve presente na pauta dos critérios de seleção e nos filmes exibidos. O sexismo, o racismo, a crise da saúde pública, a desvalorização do emprego formal, a homofobia, a transfobia e a xenofobia foram temas discutidos em debates que chegaram a ser alvo de hackers, demonstrando o quanto precisamos estar atentos a uma ideologia retrógrada que, a depender de nós, nunca será hegemônica.

Como destacou o cineasta Cacá Diegues, o Brasil vive um “desmatamento cultural”.  Brasília, em resposta, produziu uma série de proposições que alinhamos a seguir:

1. Articulação política e apartidária do cinema brasileiro com frente parlamentar no combate ao desmantelo da Ancine, da Cinemateca e da política de fomento ao cinema nacional.

2. Estabelecer um novo marco jurídico para modelo de prestação de contas da Ancine por meio da Frente parlamentar Mista em Defesa do Cinema e do Audiovisual Brasileiro.

3. Aprovar o projeto de Lei que prorroga até 2030 a obrigatoriedade de exibição filmes brasileiros em salas de cinemas do país

4. Vigília constante e resistente ao desmantelo da Cinemateca Brasileira e do Centro Técnico Audiovisual, que ameaça a guarda da memória nacional e paralisa as pesquisas documentais para criações de novos projetos.

5. Fortalecimento e amparo dos acervos das cinematecas regionais e de cunho familiar que compõem importante rede memorial.

6, Desaparelhamento ideológico da Ancine para que volte ao pleno funcionamento como órgão de fomento do cinema brasileiro em sua plenitude de criação, em todas as direções.

7. Incentivar o cinema feito por etnias indígenas, de criadores e criadoras de povos originários.

8. Desenvolver um cinema para crianças comprometido com a arte educativa, inclusiva e de pensamento crítico.

9. Ampliar a participação de corpos negros no cinema ocupando territórios geográficos e físicos inéditos.

10. Acesso a cineastas negras para desenvolvimento de seus projetos cinematográficos, aumentando a presença dessas criadoras em nosso cinema.

11. Permitir que o cinema feito por mulheres alcance, ao menos, paridade de gênero em editais públicos.

12. Pôr fim ao silenciamento de temas relativos à violência de gênero e raça com editais de criação favoráveis a discutir essa urgente realidade brasileira que destrói vidas diariamente.

13. Dar visibilidade aos criadores e criadoras LGBTQIAP+ em editais públicos.

14. Promover a discussão das questões ambientais mais graves do nosso tempo na destruição dos ecossistemas, biomas e das comunidades tradicionais.

15. Buscar formas de financiamento junto a empresários comprometidos com causas culturais e socioambientais.

16. Consolidação do Troféu Cosme Alves Netto como uma ferramenta da Anistia Internacional para o incentivo de narrativas humanistas no cinema nacional.

17. Caracterizar o documentário como obra cultural, educacional, intelectual, não ficcional e, por vezes, biográfica, atributos o eximem de autorização e pagamento pela utilização de obras autorais de terceiros, na forma da Lei.

Assistam os melhores momentos do Festival:

Brasília 60 anos – Filmes e personalidades que marcaram o Festival de Brasília
Cinemateca Brasileira: Memória e Identidade
Liberdade de criação, direitos autorais e usos livres

Subscrevem a Carta de Brasília:

ABD – Roraima
Adrian Cooper.

ABC.
Adriano Esturilho
Ailton Franco Jr
Alexandre Elaiuy
Alexandre Rocha
Alice de Andrade
Amanda De Stéfani
Ana Cristina Campos
André Luiz Oliveira
Ana Mara Abreu
Ana Maria Magalhães
Ana Musa
Ana Paula Cardoso
Ana Rieped
Andrea Glória
André Besen
André Bressen
André Manfrim,

André Xará
Anna Azevedo
Anne Celestino
Annette Torres
Antonio Carlos da Fontoura
Antonio Claudino de Jesus
Ariela Goldmann
Aristeu Araújo

Associação Brasileira de Críticos de Cinema
Associação Cultural Cinemateca Catarinense ABD/SC

Aurelio Michiles
Barbara Cunha
Betse de Paula

Brada – Coletivo de Diretoras de Arte do Brasil
Breno Luís Figueiredo Nina
Brent Millikan
Bruna Franchetto
Bruno Espírito Santo
Caca Diegues
Caetano Curi
Camila Vieira
Carina Biri
Carla Caffé
Carla Francini
Carlos Ebert ABC
Carlos Eduardo Ceccon
Carmen Luz
Carol Ozzi
Carolina Durão
Catarina Acioly
Cavi Borges
Chica Mendonça
Cibele Amaral

Clarissa Ribeiro
Claudia Assunção

Claudia Furiati
Claudia Dottori
Cláudio Constantino
Cláudio Kahns
Claudio Tammela
Clementino Jr
CONNE – Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste
Constância Laviola
Cristian Brayner
Cristiano Maciel
Cristina Leal
Daniela Aldrovandi
Daniela Broitman
Daniela Duschenes
Daniel do Nascimento Paim
Daniel Satti
Dany Espinelli
David Tygel
Dayse Barreto
DBCA – Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual
Débora Pascotto
Denise Paraná
Dina Salem Levy

Dodô Brandão
Dorotea Bastos

edileuza Souza
Edmundo Lippi
Eduardo Albergaria
Eduardo EScorel
elaSCine – Mulheres do Audiovisual Catarinense
Elder GomesGiovanna Giovanini

Arthur Frazão”
Elder Gomes Barbosa
Eliane Giardini
Elisa Gomes, documentarista e produtora
Els Lagrou
Elsa Romero
Emanuela Palma – documentarista
“En mi nombre y en el de DASC apoyamos esta carta.
Mario Mitrotti presidente DASC SGC Directores Colombia.”
Enock Carvalho
Erica sansil
Eryk Rocha
Bruna Franchetto
Fabio Carneiro Leao
Fabrizia Gallan
Fátima Guimarães – ABD Piauí.
Felipe David Rodrigues
Felipe Reinheimer
Fernanda Carlucci
Fernanda Tanaka
ABC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CINEMATOGRAFIA”
Filippo Pitanga
Flávia D’Urso, advogada
Flávia Guerra
Flávio R Tambellini
Forcine – Fórum brasileiro de Ensino de Cinema Audiovisual
Francine Moura
Francisco L.C. Mendonça Filho (Chico Mendonça)
Gabriel Higa
Gabriel Perrone Vianna
Gabriela Burck
Gabriela Furniel
GAMA – Associação de Produtores de Game e Animação .
George Saldanha
Geraldo Ribeiro

Glauce Queiroz
Glauco Salgado Firpo
Gloria Teixeira
Gostaria de poder assinar a carta/manifesto e a diretora de Eric também! A Letícia Castanheira.
Graciela Guarani
Guigo Pádua
Guilherme Fiuza Zenha
Gustavo de Azevedo Soyer
Gustavo Spolidoro
Gustavo Zysman Nascimento, Técnico de Som Direto e Desenhista de Som do cinema brasileiro,
Hansa Wood
Helena Tassara
Helvécio Ratton
Henrique de Freitas Lima, Cineasta e Advogado especialista em Cultura, Esportes e Terceiro Setor.
Hugo Kovensky, diretor de fotografia
Ilda santiago
Inez viana
Instituto Oca do Sol
Iomana Rocha
Isabelle Bittencourt
Jacob Solitrenick
Jacques Cheuiche
Janaína Ávila Brasil, atriz e produtora executiva e Bosco Brasil, roteirista
Joana Claude
Joana Mureb
Joel Pizzini
Joel Zito
Jom Tob Azulay
Jorge Bodanzky
Jorge Duran
Jorge Peregrino
Jorge Saldanha
José Joffly
Julia Bernstein
Julia Lemmertz
Juliana Colares
Juliana Lobo
Juliana Ribeiro
Katia Muricy
Kledir Ramil
Lais Bodansky
Laura carvalho
Leandro Lima
Leandro Lima
Leticia Bueno
Leticia Monte
Liloye Boubli
Lino Meireles
Lirio Ferreira
Lito Mendes da Rocha
Liviane Santana P F Nina
Lize Borba
Luan Cardoso,
Lucia Lemos
Lucia Murat
Luis Alencar
Luis turiba
Luiz Abramo
Luiza Lemmertz
Luiza Lusvarghi
Maíra Mesquita
Malu Mader
Manifesta Feminista
Manoela Clemente
Marcella Tovar
Marcello Benedictis
Marcus Ligocki
Maria Abdalla
Maria Consolacion Udry
Maria do Socorro Carneiro Madeira
Maria Flor Brazil
Maria Gal
Maria Rita Nepomuceno
Mariana Cavalcante
Mariana Genescá
Mariana marinho
Marina Pessanha
“Mario Sergio Medeiros

Eliane Giardini
Larissa Maciel
Luciana Sérvulo da Cunha
Cissa Guimarães
Ernesto Piccolo
Raul Labancca”
Mariza Leão
Mariza Leão
Marta Paret
Marx Vamerlatti
Michelly Hadassa Rodrigues de Castro SC
Miguel angel dony
minina pinho
Monica Torres – atriz e produtora
“Mouhamed Harfouch
Paulo Betti
João Signorelli
Silvia Buarque
Aramis Trindade
Nena Inoue
Cícero Belem – ator e produtor”
Mulheres do Audiovisual Brasil
Murilo Salles
Mustapha Barat, ABC
Neto Borges
Nelson Kao Wei Chin
Nilson Rodrigues
FilmaRio
Octávio Yuri Nobre Azevedo Lemos

Lilih Curi
Bia Ambrogi
Pablo Guelli
Paloma Mecozzi
Paola Vieira
Paula Barreto
Paulo Caldas
Paulo Nascimento
Paulo Thiago
pedro farkas
Pedro Lima,
Pedro Saldanha
Pola Ribeiro
PH Souza
PROSA associação dos técnicos de som
Jordana Berg
Wanderlei Silva

Rafael Blas
Raiza Antunes
Raoni Gruber
Regina Zappa
Renata Magalhães
Renato Barbieri
Ricardo Alves Jr.
Ricardo Pinto e Silva
Rita Faustini
Roberto Gervitz
Roberto Gonçalves de Lima

“Rodrigo Ribeiro
Julia Faraco
Piero Sbragia
Renata Martins
Rodrigo Sellos
Rosane Serro
Rogério Beretta
Rubens Rewald
Sarah Noda
Séphora Silva
Sérgio Bloch;
Sergio Fidalgo
Sérgio Moriconi
Seria Sated/PR
Silvia Frahia
Sinai Sganzerla
SINDAV-MG Sindicato da Indústria Audiovisual de Monas Gerais
Solange Souza Lima Moraes
Stella Penido
Sura Berditchevsky
Susanna Lira
Sylvia Palma
Sylvio Back
Sylvio Lanna
Tabajara Ruas
Tainá Carvalho Ottoni de Menezes
Tainá Xavier
TALES SALATI MANFRINATO
Também assinam Lena Lavinas, profa de pós do IE da ufrj e Rosa Amanda Strausz, escritora e agora editora também
Tania Montoro
Tatiana Leite – Produtora e curadora
Tereza Trautman
Thais Junqueira
Theresa Amayo Brasini – atriz
Thiago Briglia – produtor “Por onde anda Makunaíma?”
Tiago Carvalhho
Tide Borges, ABC

Tizuka Yamazaki
Toni Venturi, cineasta
Tuninho Muricy
Ula Schliemann
Ulisses de Freitas Xavier
Val Gomes, Documentarista e pesquisadora, São Paulo
Valéria Verba
Vinícius Schuenquer
Venessa Lopes
Vera Hamburger
Vera Santana Luz
Vladimir Carvalho
Vladimis Seixas
Walter Carvalho
Wanderley silvs
Yuri Seid

Polêmica: o porquê das Prévias Cidadãs

por Célio Turino

Publicado originalmente em Outras Palavras


Não se trata apenas de escolher um candidato à Presidência – mas de sacudir a velha política de baixo para cima, e em meio às novas lutas sociais

Imagem: Lee Stapleton

Que encalacrada! Assim o Brasil se encontra, metemo-nos em um atoleiro e quanto mais nos mexemos, mais nos atolamos. Metemo-nos é o termo justo, pois enquanto não houver consciência de que a responsabilidade pela situação política, econômica, social, cultural, ética e moral no qual nós, os brasileiros, nos envolvemos, é de todos nós, não termos condições de sair deste atoleiro. Claro que há níveis diversos de responsabilidade e autoria pela situação em que nos encontramos, sendo que há alguns espertalhões com muito mais poder e culpa que outros. Mas há também o povo, do qual deveria emanar todo o poder (ao menos é o que inscrevemos em nossa Constituição), que poderia exercitar melhor sua cidadania. Afinal, sociedades empoderadas, conscientes e protagonistas não produziriam uma imagem tão vergonhosa quanto a expressa no Congresso Nacional e demais Instituições do Poder. Uma imagem distorcida, sem dúvida, como a refletida nestes espelhos em Parques de Diversões, quando as pessoas tornam-se mais altas ou gordas, a depender do ângulo e formato do espelho, mas ainda assim uma caricatura de nós mesmos, não há como negar.

A ignorância, o poder econômico e político, a força bruta de instituições a serviço do Sistema, ou a força “soft” da mídia igualmente a serviço do Sistema, as manipulações, as mentiras, o abuso de autoridade – tudo contribui para a distorção de nossa própria imagem. Porém, quando assistimos às bizarrices e locupletações na política, é um pouco de nós que está sendo projetado, inclusive nas poucas exceções éticas. Apenas transferir responsabilidades (como é característica da cultura nacional) não terá serventia para resolvermos o problema; por isso a necessidade de chamar a solução do problema sempre para a primeira pessoa no plural: Nós. Nós por nós, nós para nós.

Talvez não seja simpático iniciar um artigo, que se pretende esperançoso, falando de nossa cara; e de uma cara que talvez não seja tão bonita, muito menos justa. Mas se não enfrentarmos este primeiro desafio, jamais romperemos com esta ingresia, como dizem os sertanejos no nordeste brasileiro. O Brasil atual está confuso, obscuro, ininteligível. Alguma dúvida de que encontramo-nos nesta situação? Seguir nos vitimizando, como se fôssemos inocentes cidadãos à mercê de políticos corruptos, não basta; há que nos percebermos como parte e solução do problema. E esta solução, ou virá por nós, ou não será uma boa solução; quando muito, a superação de uma encalacrada por outra, até nos encontrarmos novamente entalados em um espinheiro da caatinga.

Isto acontecerá se depositarmos nossas únicas esperanças na busca de um salvador ou herói. “Triste o pais que precisa de heróis!” disse Galileu, na dramaturgia de Bertold Brecht. Mais infeliz o país em que as pessoas correm desesperadamente na busca de salvadores da pátria; e foram muitos os que se colocaram, ou buscam se colocar, nesta condição, sendo que o resultado sempre foi o aprofundamento no atoleiro. Para tirar o Brasil da ingresia, primeiro há que nos olharmos no espelho e nos reconhecermos sem medo ou preconceito. Após isso nos cabe, escrupulosamente, ir separando os espinhos, desatando nós e nos movendo no lodo. Este movimento pode até levar mais tempo, pode ser mais difícil e até mais dolorido, mas ou será assim ou não haverá futuro saudável para o Brasil.

Como sair do atoleiro?

Depois de nos olharmos no espelho e de compreendermos quem somos nós (de forma um pouco menos distorcida que a atual, ao menos isso), há que se aproximar daqueles que, como nós, buscam, honestamente, sair desta encalacrada. E sair desta situação por meio de um caminho ético, generoso, democrático e diverso. Somos muitas e muitos, mas precisamos nos reunir e nos entender melhor. Convergir, confluir, este é o nosso desafio. Uma Convergência Cidadã em processos democráticos, horizontais, radicais (de ir à raiz) e profundos.

Se voltarmos a nos olhar no espelho de forma mais acurada vamos descobrir que, para além do lodo e dos espinhos, há também um povo generoso, criativo e empreendedor. Um povo que trabalha de sol a sol, um povo que inventa, um povo que socorre ao outro. Mas para ver este povo no espelho é preciso sair da superfície, é preciso esmero e voltar às origens, à base. Há tanta gente boa e fazendo coisas belas e corajosas por aí! Cabe nos observarmos e nos juntarmos mais, desescondendo um Brasil que ainda não conhecemos. Um caminho: Prévias Cidadãs.

Já há um movimento em gestação: #queroprévias. Se houver êxito e se este movimento tiver clareza e firmeza para unir corações e mentes, potências e afetos, algo de muito bom poderá brotar. Mas para tanto é preciso transbordar os partidos. Há que ter coragem, sabedoria e desprendimento para buscar novos caminhos e não temer o novo, muito menos temer a perda de controle. Aí já surge a primeira contradição com os partidos políticos constituídos, mesmo os do campo da esquerda, pois é da natureza dos partidos o desejo de controle, a verticalização e o mando hierárquico (expressa, até desapercebidamente, no vocabulário militar da política: “militante”, “cabo eleitoral”, “vanguarda”, “infantaria”). Um desafio e tanto, que pressupõe uma nova cultura política, mas que precisa ser enfrentado desde já, pois não há tempo a perder.

A Prévia Cidadã seria uma forma de construção coletiva do diálogo, de um programa comum e de recomposição de um campo democrático, popular e cidadão; ou melhor, de composição do campo da Vida em contraposição ao campo dos Sistemas. Isso pressupõe novas formas de agir e sentir, menos vanguardismo e mais retaguarda, com mais horizontalidade e polifonia.

Partindo deste princípio, não seria uma Prévia Cidadã, mas Prévias Cidadãs. Para além da escolha de programas e candidaturas para a presidência e vice-presidência da república, as prévias devem abrir espaço para a formação de chapas legislativas, via bancadas ativistas, e candidaturas a governos estaduais. As prévias também devem ser percebidas como um processo de ocupação da política e das formas de poder, de modo a orientarem o fortalecimento de Conselhos Cidadãos nos municípios e demais níveis de poder. Precisamos ocupar o vazio de um Estado em desmantelamento e este vazio se expressa de forma mais palpável nos municípios e nos poderes locais. Ocupar tudo! Como os secundaristas e universitários começam a fazer, experimentando novos exercícios de cidadania. Sem esta combinação entre a disputa na macropolítica e na micropolítica, o movimento por prévias cidadãs estará fadado ao insucesso, pois inevitavelmente se deslocará das formas mais pujantes da vida.

Do mesmo modo, programa e a escolha das pessoas que virão a expressá-lo devem ser desenvolvidos em um só processo. “O movimento da carroça coloca as melancias no lugar”, como diz a sabedoria caipira. Tivéssemos aprendido já teríamos percebido que um dos grandes problemas que levaram à desmoralização da prática política atual (nos mais diversos partidos) é a distância entre o que se diz e o que se faz. Assim, forma (candidatura) e conteúdo (programa) deverão ser constituídos em conjunto, em Prévias Polifônicas e Policêntricas, com enraizamento pela base e construção de novas formas de contrapoder. Somente assim será possível oferecer ao Brasil candidaturas cidadãs com forte componente comunitário, experiência, coragem e vínculo com o mundo da vida.

O que fazer?

Juntar quem quer estar junto e fazer com ousadia. Simples como no poema de Torquato Neto: “Só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”. Mais que nunca, o sentido de urgência histórica está colocado no Brasil. O caminho são as prévias e em processos de transbordamento dos partidos. Estamos convencidos disto? Se estamos convencidos, vamos a ele sem vacilação, pois o ajuste fino se dará no processo. Este deve ser o primeiro ponto de convergência e quem quiser estar junto, de corpo e alma, com disposição e coragem, ética e desprendimento, que seja bem vindo. Uma Confluência de Redes, Movimentos, Organizações, Partidos (com registro legal ou não) e pessoas (muito importante que seja um movimento em que as pessoas tenham vez e voz, para além das organizações formais), como base para uma Convergência de Potências e Afetos.

“Quando os todo-poderosos governam com a irrazão e sem limites, somente os que possuem nenhum poder são capazes de imaginar uma humanidade que um dia terá poder e, com isso, mudará o próprio significado desta palavra” (Terry Eagleton). Utilizei esta citação quando escrevi o programa Cultura Viva e a proposta para os Pontos de Cultura, em 2004; mais que nunca, esta reflexão segue atual e necessária para que o país supere a crise em que estamos metidos. E esta superação terá que vir de baixo para cima, de dentro (da sociedade) para fora (o Estado). E a comparação exata tem que ser esta mesma, a Sociedade é o dentro (somos nós) e o fora são as Instituições e o Estado. São estes que estão fora da ordem, não o povo, não as pessoas; porém, ao longo de séculos, o Sistema nos fez crer que é a vida que deve servi-lo. Assim, diariamente, somos adestrados para sermos comandados pela lógica dos Sistemas, do Mercado, do Estado, das Igrejas e poderes construídos. Mas, como bem disse o Papa Francisco: “os Sistemas que precisam servir à vida, nunca o contrário. Chamar para a cidadania o comando de um novo processo de convergência, ou concertação, política (via Prévias Cidadãs) é, sobretudo, um ato de afirmação da vida. Ou será assim ou o Brasil seguirá em crise, ou em totalitarismo, ou em barbárie.

Para ter êxito, as previas precisarão ir além dos partidos e organizações instituídas. Há muitos novos movimentos brotando, há muitas pessoas agindo, há muitas boas ideias no ar. Ao final do processo das prévias, para além de candidaturas, o processo poderia resultar na costura efetiva de uma Frente Cidadã, convergente, afirmativa, progressista, democrática e diversa. Não uma Frente como as que vão se constituindo, a partir de lideranças, partidos e organizações que decidem se unir, estes também, sem dúvida, mas uma Frente costurada pelas pessoas, em processos de base e em meio à luta cotidiana, será muito mais bem costurada. Isto significa que o processo de Prévias tem que estar colado na luta real e, ao lado das prévias, deve exigir Plebiscito, para que povo decida sobre os planos de austeridade do governo (a PEC 55 – antiga PEC 241, que congela o gasto público por 20 anos, permitindo apenas o reajuste pela inflação) e a Reforma da Previdência, em que todo o custo recairá sobre trabalhadores e aposentados.

Por este caminho as Prévias estarão ultrapassando seu próprio objetivo original, podendo se transformar em um atrator da resistência aos retrocessos desencadeados pelo golpe de Estado (de caráter judicial, midiático e parlamentar) que o Brasil está sofrendo, não em dissonância com as Frentes já existentes (Brasil Popular e Povo Sem Medo), mas somando-se a elas, que, igualmente, podem se somar às Prévias. Mais que isto, a agregação entre Prévias e Plebiscito será um claro sinalizador de que tudo que afeta a vida das pessoas tem que ser decidido pela própria vida, pelas pessoas (e não por cardeais, ou “entidades” do Sistema), que são a única fonte soberana de direito. Prévias significa, portanto, ampliação da autonomia e do protagonismo popular, via mecanismos de democracia direta.

Mais que simples abertura para a participação, deliberação e votação por qualquer cidadão que queira se inscrever no processo das prévias, de forma simples e desburocratizada, a organização das Prévias tem que apresentar a sincera disposição em prospectar novas propostas, lideranças e candidaturas. Ou as prévias terão abertura para candidaturas independentes, ou que venham da base de partidos populares, ou será um simulacro, servindo apenas para a legitimação dos poderes de sempre. Prévia tem que ser para valer e exige a coragem de perder o controle.

Mais que um evento, as Prévias devem ser percebidas como um Movimento Social, em que os cidadãos chamam para si a responsabilidade em encontrar uma saída para o país em que vivem. As pessoas que se aglutinam em torno da plataforma #queroprevias já caminham neste sentido e por isso devem ser apoiadas e empoderadas. Também será necessário desenvolver regras claras e inteligíveis, sempre buscando tornar o processo o mais igualitário e justo (se não promovermos a igualdade e justiça entre nós, jamais teremos força moral para exigir igualde e justiça no país). Na sequência, as inscrições, com critérios mínimos de representatividade, bem como procedimentos que induzam a convergência, pelo método do Consenso Progressivo, e não disputas acirradas e fraticidas.E isto só será possível quando o Bem Comum estiver à frente do interesse individual ou de grupo. E assim será.

Assim será porque assim tem que ser. Mais que um meio para o arranjo entre as forças políticas da cidadania, as Prévias precisam ser entendidas como um meio para a disputa ética e cultural. Sem dúvida, a grande derrota, que nós, os brasileiros, estamos sofrendo, é resultado de uma derrota acontecida no campo cultural, ético e moral. A própria cidadania vai se desfazendo quando as pessoas são colocadas, e se deixam colocar, muito mais na condição de produtores e consumidores do que de cidadãos, ou então como espectadores, ou “marionetes do Sistema”. Precisamos urgentemente resgatar o debate de valores, e fazê-lo de forma não doutrinária, por meio de atitudes coerentes e sem sectarismo.

Há como fazê-lo. Desde que nos disponhamos a procurar a semente em nós mesmos, cavando até encontrarmos nossas raízes mais profundas, e delas extrair a seiva vital para a retomada de nossas forças. Na raiz do povo brasileiro está o Bem Viver ameríndio, expresso no tekó porã dos Guarani; a convivência com a natureza; o viver em harmonia consigo mesmo, com os semelhantes e com o planeta; as perspectivas que mudam de lugar a depender do sujeito; o ato de se colocar no lugar do “outro” pela prática da alteridade. Também a roda, a colaboração, o ser no “outro”, o só estar bem quando o “outro” também está bem. Herdamos este sentimento escondido de nossa ancestralidade africana, com a ética e da filosofia Ubuntu. Da mesma forma que herdamos as lutas sociais e os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, tão necessários à emancipação humana, mas, infelizmente, ainda não realizados em suas três dimensões conjuntas.

Mesmo que as pessoas nem percebam, nem conheçam estas palavras e conceitos, até as repudiem, ainda assim estes valores estão dentro de nós, eles são nós. Prévia sem disputa cultural e de valores, ainda mais em um país tão desigual e intolerante, nem terá sentido se não for assim. Isto porque a retomada da esperança e da generosidade não será fácil, de tão entorpecidos que fomos pelo pragmatismo, imediatismo, hedonismo, egoísmo, ódios, ganâncias e amarguras dos tempos atuais. Mas sem esta disputa no campo de valores e da cultura não haverá mudança efetiva e sustentável.

Como fazer?

Aglutinação de apoios e lançamento do movimento ainda em 2016. Para início de 2017, abertura de inscrições, com foco na presidência da república e, ao longo do processo, abrindo caminho para formação de Bancada Ativista no legislativo e candidaturas a governos estaduais. Em conjunto, a ocupação dos Conselhos Locais e territórios, a servirem de base para Juntas do Bom Governo.

A primeira fase deve ser para apresentação de pré-candidaturas em debates temáticos (Economia, reforma do Estado e Política, Cultura e Educação, Direitos Sociais, Diversidade, entre outros), que poderiam acontecer em regiões diversas do país e com deliberação na forma de Assembleias Cidadãs (votam os presentes na assembleia, levantando a mão, primeiro na candidatura que melhor expressa o programa, para, em seguida, estabelecer processos de convergência programática, aproveitando o que cada proposta tem de melhor). Esta fase deve durar entre três e quatro meses. Na sequência verificar-se-ia quais pré-candidaturas se mantêm para a fase seguinte, que seria por estados.

O Brasil é um país continente; portanto, estas prévias devem acontecer em datas diferentes, por estado ou grupo de estados próximos. Ao final do processo seria possível identificar quais candidaturas têm maior consistência; em havendo necessidade, uma última fase com as candidaturas e propostas mais bem colocadas. Outra vantagem deste processo de prévias longas é que ele permite uma depuração natural de candidaturas e propostas, bem como um melhor preparo, conhecimento e costura das convergências em torno das candidaturas, uma vez que todo país vai acompanhando o processo, mesmo quando a prévia não esteja acontecendo em determinado estado da federação.

Em paralelo, caberá ao movimento buscar meios para um financiamento equilibrado ao conjunto dos participantes, bem como à estrutura das prévias e sua cobertura via internet e demais meios de difusão. O Brasil já viveu uma experiência semelhante, o plebiscito popular sobre a ALCA, com aproximadamente 9 milhões de participantes, há mais de uma década. Outra medida será a negociação com partidos políticos com registro legal, para que participem do processo e se submetam ao resultado das prévias, inclusive abrindo a legenda para candidaturas democráticas e solidárias, uma vez que devem ser estimuladas candidaturas sem filiação partidária prévia. Esta negociação não será tão simples, pois na forma com que os partidos estão constituídos, nem todos, mesmo no campo progressista, estarão dispostos a abrir mão de seu poder cartorial. Porém, se o movimento for ganhando legitimidade social, talvez seja possível que alguns partidos compreendam que se desprender do poder é o que de melhor eles tem a oferecer ao país. A verificar.

Para que as Prévias não fiquem reféns apenas desta alternativa, cabe propor projeto de lei que possibilite candidaturas independentes, via lista cidadã, como acontece em muitos países. Seria um ótimo caminho para romper o monopólio dos Partidos sobre a representação política. Será que os Partidos terão coragem em assumir esta mudança? Será que a sociedade tem força e disposição para fazer valer esta mudança na política? Outra alternativa seria reforçar o processo de legalização de novos partidos (RAiZ, UP, Piratas, PartidA, Mais), mais abertos a esta simbiose entre pessoas, movimentos e instituições. Ou então, um misto entre as três alternativas.

Enfim, há alternativas e caminhos. Se até a física já demonstra que o Universo não é mais uno, sendo um Multiverso, em que diversas dimensões se entrelaçam e se complementam, por que não fazer o mesmo na política? Uma disposição para conter e estar contido, encontrando a unidade na diversidade, fazendo com que a singularidade complemente o múltiplo, sem a necessidade de se anular. Vamos nos arriscar neste novo fazer político, colocando a política em nossas mãos? Se sim, Feito! Agora é seguir com a ousadia de quem nunca desiste da esperança.

  • Célio Turino – Historiador e escritor. Segue por aí, pensando e semeando políticas públicas em duas dezenas de países; ajudou a construir teoricamente e foi ativista para a criação da Lei Aldir Blanc, de Emergência Cultural.

Wilsão, os índios e os Estados Gerais da Cultura

por José Ribamar Bessa Freire

Publicado Originalmente no Taquiprati

Que importa o chapéu de palha, o traje, o rude perfil.

Ele é um homem que trabalha, ele é o filho do Brasil”.

(“Infância Brasileira”, livro didático da década de 50)

Mãe? Ninguém sabe quem era. Pai, muito menos. Ele era filho do Brasil como tantos outros cantados em quadrinha de autor cujo nome não lembro mais. De pais desconhecidos, Wilson Pinheiro de Souza nasceu por volta de 1933, sabe-se lá em que dia e mês, no Careiro (AM), distante de Manaus umas quantas horas de barco, onde aprendeu a nadar nas águas do rio Castanho. De lá foi parar no Acre, na fronteira com a Bolívia. Trabalhou em seringal e foi eleito presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, quando o conheci em abril de 1979, numa reunião com os índios Apurinã no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco.

Ele seria mencionado na abertura da minha fala no 5º Encontro dos Estados Gerais da Cultura (EGC), programado para domingo (6) sob a batuta do cineasta Silvio Tendler, organizador do movimento que pretende recriar o destroçado Ministério da Cultura. Desde julho, aos domingos, uma centena de pessoas se reúne para discutir o Brasil e suas políticas culturais. No meu dia, quando eu ia começar a falar, uma horda de bárbaros invadiu com palavrões a sala do zoom aos gritos de “mito, mito”, exibindo imagens do capitão armado.  

– “Estamos incomodando, fomos reconhecidos pelo adversário, passaram recibo” – celebrou Silvio Tendler, um guerreiro da paz.

A Escola Superior da Paz foi criada pelo movimento EGC com objetivos diferentes aos da Escola Superior de Guerra e, segundo a jornalista Tânia Fusco, já conta até com um reitor, o historiador Célio Turino, que como secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010) criou o Programa Cultura Viva, responsável por mais de 2.500 Pontos de Cultura em mais de mil municípios brasileiros. A Escola da Paz defende a Doutrina de Segurança Emocional para exigir trégua nas comunidades das periferias brasileiras, contando para isso com as amadíssimas Forças Amadas.

O território indígena

Por sugestão das Forças Amadas, o 5º Encontro dos EGC foi, então, transferido para a plataforma da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde fiz um resumo da palestra sobre “O lugar dos povos indígenas na política cultural do Brasil”, devendo desenvolver o tema de forma ampla no início de outubro. Não é possível fazer uma discussão séria sobre políticas culturais, deixando os índios de fora. Mas qual é o lugar do Wilsão nessa história se ele não é indígena?

Um episódio vivido por Wilsão com os Apurinã, do qual eu participei, serviu para introduzir o tema da demarcação dos territórios indígenas e relacioná-los com a cultura. A terra indígena não é só um espaço físico, um bem material, vista pelo agronegócio e as mineradoras apenas como valor de mercado. Ela é muito mais do que isso, é um bem cultural, como ficou evidente no diálogo entre índios e trabalhadores rurais, ocorrido no dia 19 de abril de 1979, um ano e três meses antes do assassinato do Wilsão.

Foi assim. Nos anos 1970, o grileiro paranaense João Sorbile, apelidado de “Cabeça Branca”, aproveitou a longa temporada de caça dos índios Apurinã e com a conivência do Cartório de Boca do Acre (AM) loteou a terra indígena, vendendo os lotes para colonos vindos do Paraná. Quando os índios retornaram da caçada encontraram lá outros “donos”, que exibiam recibos do pagamento feito ao grileiro. Armou-se um conflito feio entre índios e posseiros.

Para lutar contra o grileiro em vez de brigar entre si, índios e posseiros se reuniram no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco, com a participação de lideranças de várias entidades, entre as quais Wilson Pinheiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia e Chico Mendes, ex-secretário do sindicato que se elegera vereador em Xapuri. Daí nasceu o Comitê Índios x Posseiros, berço do movimento “Aliança dos Povos da Floresta”.

Lugar de memória

Na ocasião, foi encenada a peça “A Grilagem do Cabeça” dirigida por Vera Froes do Grupo Testa, descrevendo toda a trama sórdida. Depois do espetáculo Wilsão manifestou durante a reunião que não entendia porque os índios não se sindicalizavam.

Numa intervenção pública perguntamos a ele:

– Você aceitaria trocar a terra onde está, em Brasileia, por uma terra fértil do mesmo tamanho aqui perto do mercado consumidor?

Wilsão respondeu:

– Quem não aceitaria? A distância de lá para cá é de mais 200 km por uma estrada intransitável cheia de lama e buracos.

A mesma pergunta foi dirigida a Manuel Apurinã ali presente. Ele disse que não trocaria nem por um terreno dez vezes maior. É que para ele a terra era um lugar de memória, um espaço sagrado, onde estavam enterrados os seus mortos, com numerosas referências às narrativas míticas. Sem ela, a cultura Apurinã se esfacelava.

Manuel cantou, então, para uma plateia silenciosa e reverente, uma canção em língua Apurinã. Embora desconhecesse a língua, Wilsão entendeu tudo, percebeu que estava diante de outra cultura, com sua forma específica de ver e lidar com a terra. Manuel disse algo assim como “não é a terra que nos pertence, somos nós que pertencemos à terra. Por isso não podemos sair de lá”. Na versão Guarani, sem tekoá (aldeia) não há tekó (cultura). É no território que eles cultivam o nhanderekó (o “nosso jeito de viver”), que dá conta das relações internas pautadas pela ética do parentesco e pelo ideal de boa convivência.

Forças Amadas

Portanto, quando o governo Bolsonaro impede a demarcação das terras indígenas, tal medida, que contraria a Constituição, golpeia culturas milenares e destrói línguas, saberes tradicionais, arte, música, literatura oral. A Funai bolsonarista editou uma instrução normativa que permite o registro de propriedades privadas sobrepostas a terras indígenas em processo de homologação, oficializando assim a grilagem. A juíza federal do Pará acaba de suspender tal excrecência,  

Durante quase cinco séculos os índios perderam mais de 87% de seus territórios e com eles suas culturas, que são vitais não apenas para os povos originários, mas para o Brasil e para a humanidade. Por isso, a Constituição de 1988 repactuou: o que os povos ameríndios perderam, perdido está, mas o Estado garante daqui em diante o usufruto das terras que permaneceram ocupadas.

A atual política de um governo que nega aos índios, em plena pandemia, o acesso à água potável, mostra que esse pacto está sendo violado. A garantia da terra aos povos indígenas, como assegura a Constituição, não é apenas uma medida no campo da economia, mas faz parte da própria  política cultural. É isso que, entre outras questões, os invasores da reunião não queriam que fosse dito e discutido.

Wilsão era um homem da paz. Liderou o movimento Mutirão contra a jagunçada, que levou centenas de posseiros a tomar dezenas de rifles dos pistoleiros contratados por grileiros, entregando as armas ao Exército.  Wilsão foi assassinado, aos 47 anos, com um tiro pelas costas, mas parece que continua incomodando. E nós com ele. Três vivas aos Estados Gerais da Cultura, à Escola Superior da Paz e às Forças Amadas.

Obs: Créditos: fotos de Milton Guran, Nietta Monte, entre outros.

  • José Bessa Freire – Defensor das línguas indígenas necessárias à preservação da diversidade dos idiomas tradicionais brasileiros, José Bessa Freire é Doutor em Literatura Comparada, coordenador do Programa dos Povos Indígenas (UERJ) e professor no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Autor de “Rio Babel, A História das Línguas na Amazônia”, entre outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.