O Trauma na Pandemia do Coronavírus

Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas analisadas pelo psiquiatra e psicoterapeuta, Joel Birman

A pandemia representa a maior catástrofe sanitária do século XXI. O século XXI começou com essa pandemia. É o acontecimento fundador, que colocou em questão o espaço social, as nossas ideologias políticas, o retorno a dias de extrema direita no mundo, o questionamento do discurso da ciência através dos negacionistas. Certamente é a maior tragédia da História do Brasil. Se a gente for lembrar que até então as 2 maiores tragédias foram as 35mil mortes ocorridas na gripe espanhola no século passado, no Pós 1a Guerra Mundial e, anteriormente na Guerra do Paraguai onde morreram 50mil pessoas.

No negacionismo entra em jogo aquilo que o Freud chamava o “mecanismo psíquico da recusa”, e que localizava no campo das perversões. Um sujeito perverso ele olha pra algo e em um segundo momento ele não reconhece aquilo que ele percebeu. Ele faz uma clivagem psíquica: perceber mas recusar o mal e a partir daí desafiar a morte, como uma defesa maníaca que essa recusa diante do mal coloca. É muito diferente daquilo que se  chama de ‘denegação’, que se passa num campo comum das neuroses.”

Nós estamos caminhando pra 600 mil mortos nos EUA que é o país em que mais se matou gente nessa pandemia. De forma que esse número de mortes nos EUA ele corresponde a mais mortes do que aconteceram na 1ª e na 2ª Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã, do que todas as grandes guerras que ele participou no século XX.

Os órgãos de segurança sanitária americana anteciparam ao Donald Trump a possibilidade de existir uma grande pandemia, esses relatórios foram jogados na lata do lixo, não foram levados em consideração, com a crença de que isso apenas atrapalharia o crescimento econômico americano.

Todos os grandes economistas em escala planetária afirmam que nós teremos uma recessão igual ou comparável à grande crise do capitalismo em 1929. Essa recessão atual é maior do que a recessão de 2008, a crise do sistema imobiliário que quebrou o sistema. Nós pagamos essa dívida, porque os governos ressarciram os homens do capital financeiro e as empresas do capital financeiro que faliram no planeta.

Em 2018 a OMS considerou que as depressões eram consideradas como sendo a doença mais prevalente internacionalmente que existia. Até então, antes de 2018, esse lugar de doença mais prevalente existente no mundo era ocupado pelo câncer, pelas doenças cardíacas, doenças degenerativas do sistema nervoso,  diabetes, transtornos metabólicos, mas jamais pelo campo da saúde mental. Esse número já era o efeito da crise econômica de 2008, onde o sistema de precarização social foi altamente intensificado em escala global. Onde nós assistimos a esses êxodos dos refugiados que aumentou muito nos últimos 10 ou 15 anos, de pessoas que saíram da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América Latina, em relação aos países ditos mais ricos, EUA ou países europeus, em nome da sobrevivência. Isso se dá com a expansão do capitalismo neoliberal como forma de vida desde os anos 80 e 90 até 2020, e que teve um ponto de inflexão importante na crise de 2008.

Não se pode avaliar os efeitos dessa pandemia sem desconsiderar essa precarização do mercado de trabalho, e das condições de vida, onde elas não tem mais perspectiva de futuro. Onde a preocupação com o  bem estar das pessoas, desapareceu do mapa e a única coisa que importa é a reprodução, a lucratividade empresarial ou a lucratividade do capital econômico financeiro.

Em “A Crítica da Razão Negra”, Achille Mbembe diz: o negro é o nosso vir a ser. Através de toda essa precarização social que todos nós estamos ameaçados hoje vamos todos nos tornar negros. A metáfora da negritude marca todo o planeta nesse mundo neoliberal.

A condução sanitária da pandemia ela está inteiramente articulada com certas formas de governabilidade. Podemos considerar três modalidades diferentes de governabilidade. A primeira  foi a que se deu nos países asiáticos cujos resultados sólidos sobre a pandemia são os melhores do mundo, seja a China, seja o Vietnã, seja a Tailândia, seja a Coreia do Sul… São países que não só respeitaram as regras do discurso da ciência, orquestrada pela OMS, como também eles deram o auxílio às suas populações para que elas pudessem suportar um lockdown radical. Ela tem como background uma forma de organização social dos países asiáticos diferente dos países ocidentais. Na Europa, nos EUA, ou no Brasil, nós somos sociedades individualistas, onde, em geral, quando se fala em Estado você tem aquela famosa formulação: “Hay gobierno? Soy contra”. Quer dizer há aquela condição de ter uma posição resistente em relação ao Estado, em nome de uma certa liberdade individual.

Dentro dessa condição, desses países de tradição cultural individualista: França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha… todos esses países, em nome do discurso da ciência, empetraram o lockdown severo, em diferentes momentos no primeiro semestre do ano passado. Essas medidas políticas de Estado, é a segunda forma de governabilidade.

Agora nós temos essa terceira forma de governabilidade. O Brasil e os EUA deram as costas ao discurso da ciência em nome da produtividade econômica, uma prática, efetivamente, necropolítica, de matar as populações pobres. Sustentada através de uma suposta liberalismo político, de que o Estado estaria abusando do seu direito de querer delinear o controle sobre a vida coletiva, atropelando as liberdades individuais. Nós tivemos não só um negacionismo do discurso da ciência, mas uma espécie de colchão protetor desse discurso amparado efetivamente pelo discurso neopentecostal.

“A população brasileira ela foi exposta a uma dualidade discursiva. Aqueles que dizem que o vírus é uma gripezinha, e aqueles que dizem, não, é uma doença mortal e grave. Essa dupla mensagem, que é esquizofrenogênica, ela provocou um estado confusional na população brasileira.”

A estratégia de defesa do psiquismo diante de qualquer perigo que nos acossa são de duas ordens: transformar o invisível em visível e, segundo, transformar o indizível em dizível. Freud tem um texto famoso chamado “Medição, Sintoma e Angústia”, onde ele tenta mostrar que essa transformação se faz através daquilo que ele denominou de angústia sinal. Na pandemia, nós não podemos desenvolver a angústia sinal. Nós somos afetados por aquilo que eu chamo de uma angústia real, que é a famosa neurose de angústia, ou aquilo que os psiquiatras dos anos 80 passaram a chamar de síndrome do pânico, é a sensação que a gente tem da morte iminente. O que acontece com a COVID é que nós temos uma neurose traumática produzida  por essa incapacidade de antecipação do perigo.

O nosso antigo normal ele não nos representava mais. Essa estrutura hierárquica racial que fazia parte do antigo normal não nos interessa. Nós temos que aproveitar a situação que nós estamos vivendo para colocar em questão esse racismo estrutural.

A primeira formação psíquica é aquilo que eu chamo da neurose de angústia

Em seguida a  gente tem uma segunda formação psíquica chamada de hipocondria que isso quer dizer que nós passamos a perder uma naturalidade dos estímulos e excitações provenientes do nosso corpo. Qualquer tosse que eu tenho, eu acredito que já é a presença do coronavírus, qualquer dor muscular que eu tenha, qualquer febre é presença do coronavírus, qualquer corisa, tudo é uma máquina girando em torno do coronavírus, e isso faz com que, se eu já estava panicado, em plena neurose de angústia, eu fique muito mais, de uma forma permanente, com essas sensações hipocondríacas.

Há uma terceira formação psíquica importante do coronavírus: são as depressões e  a melancolia.Há uma despontecialização da nossa vitalidade. De maneira que a gente teve aqui nessa pandemia situações clínicas muito sérias que aconteceram sobretudo com idosos, pessoas que não podiam ver os seus filhos ou seus netos, seja vivendo com seu companheiro ou companheira, sejam vivendo sozinhos, que a partir de um determinado momento, eles começaram a se sentir esvaziados de si e começavam a se abandonar, sobre a forma de não tomar banho, não se alimentar mais, e muitos deles foram conduzidos ao suicídio. 

Mas uma quarta formação psíquica muito importante é o incremento de rituais obsessivos compulsivos que se dá pelas regras higiênicas estabelecidas pelo discurso da medicina. É uma variante da hipocondria. Elas passam o dia lavando as mãos com sabonete, com sabão, com álcool, uma, duas, N vezes, possíveis e mesmo assim ficando angustiadas o tempo todo se elas não foram imprudentes e foram contaminadas pelo coronavírus.

Uma quinta formação psíquica importante é evidentemente o aumento do número, de beber, de você fumar, tomar tranquilizantes ou antidepressivo, drogas, um incremento do uso de drogas, médicas ou não médicas durante a pandemia, da mesma forma que há um incremento da ingestão de alimentos. Existe uma bulimia que se dá durante a pandemia em que as pessoas estão engordando. Há uma sensação de que através do alimento, através do tranquilizante, do anti depressivo, através da maconha… a gente possa de alguma maneira lançar mão de uma forma de tratamento de si, em uma espécie de ato curativo, para tentar se curar desse mal que ameaça a vida delas.

A sexta formação psíquica importante é o aumento da violência doméstica. Ela se dá sobretudo da parte dos homens, através da violência, pelo exercício da força física, eles dizem assim, esse desamparo, esse desalento não é meu, mas é da minha mulher, da minha companheira ou dos meus filhos. Em que eles acreditam que com isso eles tem a força, e os outros tem a fraqueza. É uma maneira ilusória deles lidarem com sua própria fragilidade diante do mal.

Uma sétima formação psíquica é a reação das crianças à pandemia. Interações sociais das crianças se empobrecem, elas ficam presas a esse universo propriamente doméstico. E isso faz com que as crianças sejam tomadas não só pela angústia e pelas depressões a que eu me referi anteriormente, mas também que as crianças passam a responsabilidade aos seus pais por aquilo que está lhes acontecendo. As crianças tendem a acusar os pais de não terem podido proteger elas dessa perda da capacidade de vida que elas estão tendo, durante mais de um ano.

E a oitava formação psíquica, que eu queria destacar novamente, é a melancolia. Agora ligada a um aspecto muito particular, que tá se colocando hoje, mas vai se colocar mais no futuro, que é a maneira pela qual nós vamos lidar com esses cadáveres. Nossas práticas funerárias atuais, por conta do fato de que as pessoas ao irem a um cemitério elas podem ser contaminadas,  elas se restringem a 1, 2 ou 3 pessoas no máximo, se tanto. De maneira que esses rituais funerários deixam de existir. Segundo Freud, os rituais funerários dignos são condição pro trabalho de luto. O que ele dizia é que quando a gente não consegue fazer o trabalho de luto, nós caímos em uma condição melancólica. Eles ficam na condição de mortos vivos porque eles não tiveram um enterro digno. Pra que a gente possa fazer o nosso trabalho de luto individual, singular, a gente precisa que esses mortos sejam reconhecidos publicamente como mortos, de que a gente preza esses corpos mortos.

Texto transcrito e editado pela cineasta Maria Rita Nepomuceno sobre a fala de Joel Birman, cujo tema tratou do conteúdo do seu livro ‘O Trauma da Pandemia do Coronavirus”, acessível ao público nesse link: Grupo Editorial Record. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

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