Boaventura: ser utópico é a única maneira de ser realista no século XXI

Diversas maneiras de entender a distância social

Boaventura de Sousa Santos é um sociólogo português, poeta e escritor que tem se dedicado nos últimos anos a analisar as consequências da pandemia no comportamento da humanidade.

“A ideia que há uma humanidade é uma grande armadilha. A humanidade é um projeto maravilhoso, mas  é uma utopia porque a humanidade que nós temos nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais não existem sem sua própria humanidade“(clique aqui)

Num encontro realizado em outubro de 2020, Boaventura ofereceu ao público uma verdadeira aula sobre o que representa da “distância social à física e à cultural’, assim como os equívocos cometidos pela mídia e redes sociais ao cunhar a expressão ‘distância social’ no lugar do ‘isolamento físico’. Um encontro que não perde jamais a atualidade enquanto o mundo continuar o mesmo.

Um pouco de seus pensamentos e palavras tentamos reproduzir aqui:

“Escolhi como tema a ideia da “distância física, à social e à distância cultural”. Distância é uma palavra que hoje explodiu na comunicação social, nas redes e em todos jornais. Distância metaforicamente pode ser usada para outros objetivos, como distância temporal, espacial. Assim que se desenvolvem certos conceitos e depois se usam metaforicamente para muitas formas. Por exemplo, a distância temporal ou a espacial ou a social.

A corrente do rio foi o termo que metaforicamente deu origem a corrente elétrica. na psicologia a corrente da consciência. Portanto, a distância física é aquela que a própria pandemia nos exige neste momento. Esta distância nada tem haver com a distância social. A grande proximidade cultural e social pode conviver com uma distância física. Por alguma razão, a distância física, como expressão, não colou e se fala em todo lado da distância social, uma palavra horrível se nós daqui pra diante temos em mente que a pandemia vai estar conosco.

No livro  “Futuro começa Agora, da pandemia a utopia” procuro dar conta e falar sobre a sociedade que vamos entrar. Entrada do século XXI. Os séculos começam sempre com um acontecimento e nunca no primeiro ano. Algo, que dá marca que se inscreve no século e que depois, de alguma maneira, muda as formas de sociabilidade, políticas e econômicas desse tempo. Por exemplo, considera-se o século XIX, quando começou com a Revolução Industrial. Como se diz, que o século XX, começou com a primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Dois acontecimentos que se inscreveram na matriz desse século passado.

A pandemia se inscreveu neste século porque há uma correlação com as mudanças climáticas, desmatamento na Amazônia, catástrofe ecológicas, mineração a céu aberto, tudo que sabemos que é o modelo capitalista dominante.

Esse modelo que está a destabilizar os habitats dos animais selvagens porque houve sempre vírus. Grandes mudanças na natureza destabilizam os ciclos da transmissão e o vírus que circulava apenas entre os animais selvagens chega ao homem que não tem imunidade.  A incidência das pandemias vai ser cada vez maior em função das eminentes catástrofes ecológicas em que nós nos encontramos. Vamos entrar num período de pandemia intermitente. Pode ser menos invasivo. Há muita coisa que não sabemos. Uma plataforma de incertezas que estamos a entrar, que é a marca do século XXI, que terão consequências econômicas, sociais e culturais.

Portanto devemos rever nossos conceitos. A distância social é aquela que é criada entre seres humanos num conjunto de relações sociais que decorre pela desigualdade de poder. Esta distância para ser legitimada deve ser transformada num sentido de vida, num senso comum e então transforma-se em distancia cultural. Estão relacionadas mas podem estar diferentes.  Eu posso estar distante da pessoa que amo fisicamente, mas não estar socialmente diferente dela. Pelo contrário, intensificar meu amor nesta distância. Como estar próximo fisicamente e socialmente distante.

Um exemplo: a primeira empregada doméstica que morreu de covid 19 foi porque trabalhava numa casa dos patrões que vieram da Itália infectados. Ela morreu porque já tinha outras condições de vulnerabilidade. A senhora estava próxima e vivia com eles, mas socialmente distante. Isso fez com que houvesse negligência porque era um corpo não tão importante mesmo que estivesse muito próximo. É a distância que determina que este corpo é distante socialmente mesmo muito próximo.

Durante a pandemia houve um isolamento forçado com pessoas que não ficavam confinadas, como é o caso dos casais e dos pais e seus filhos. Viver em casa com intensidade que não viviam antes. Obviamente foi algo que se deu como uma maior aproximação, Estudos mostram que os pais dedicam em média 20 minutos por dia no máximo aos seus  filhos, este tempo aumentou.

Grande parte da população não pode seguir as regras porque a vida não permitiu que isso ocorresse. Mas permitiu uma proximidade e uma outra cultura de intimidade. Exemplos: proliferaram os cursos de cozinha e outros tantos. O caso das mulheres que foram mais vítimas de violência aumentou e o próprio feminicidio. Leva crer que a proximidade aumentou e tiveram que denunciar a violência.

A distância social e física são duas coisas muito distintas. Bom de onde vem de nível macro na nossa sociedade e vem de muitas causas. Vou limitar em três grandes formas de dominação do poder desigual que existe na sociedade contemporânea deste o século XVII.

Capitalismo, colonialismo e patriarcado. 

Estas três formas existem hoje de maneira modificada e não como existiam no século XVII. Parto da ideia que as intendências não foram o fim do colonialismo, mas do fim do colonialismo histórico. O colonialismo se manteve de outras formas, como o racismo, a concentração de terras, as formas extrativistas em que o Brasil é hoje o protagonista mundial, para não falar do Estado que continuou colonial porque essas intendências na América Latina não foram conquistadas ou concedidas às populações nativas desses territórios e sim cedidos por eles esses territórios ao colonizador. Significa que vivemos em sociedades colonialistas e patriarcais.

A violência contra as mulheres está inscrita na sociedade contemporânea exatamente porque o capitalismo não funciona sem corpos racializados e sexolizados. Por que? Porque é uma maneira de realizar o trabalho. O capitalismo não funciona pagando, ainda que sempre explorando o trabalhador, um contrato com carteira assinada. Tem que ter sempre formas de exploração. Um trabalho mal pago é o racializado, de populações negras….

O não pago, o das mulheres, da alimentação, do cuidado, produz vida ao mais profundo nível.  Não é pago. Se esse trabalho fosse pago, o capitalismo não funcionaria. As formas de dominação são diferentes e criam importantes culturas: da exclusão.

O capitalismo é própria da cultura da exclusão e distância vai da exploração. O capitalismo exige que o trabalhador seja igual ao patrão em termos de cidadania. O colonialismo degrada as populações. Há uma degradação antológica, que mulheres e populações indígenas não foram nunca e durante muito tempo, em muitos países, em muitos contextos, consideradas plenamente humanas. Portanto, os corpos racializados são sub-humanos.

A ideia que há uma humanidade é uma grande armadilha. A humanidade é um projeto maravilhoso, mas  é uma utopia porque a humanidade que nós temos nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais não existe sem sua humanidade. Para ilustrar de uma forma que é muito evidente, na mesma semana em que o Brasil ultrapassou 100 mil mortes do covid 19 nada aconteceu. Não houve convulsão política, redes sociais não falavam dessa realidade. Uma certa banalização da vida de populações que são pobres, pretas e pardas. Tal é qual como os EUA. A possibilidade nos EUA de um preto morrer de covid é 3 a 4 vezes maior que um branco. Em São Paulo no Morumbi é menor do que no Campo Limpo bairro de favela, é muito maior. Temos assimetria porque o vírus não é democrático. Temos essas desigualdades. Neste momento existe um fato de uma menina de 10 anos, vítima de estupro, é uma histeria contra a retirada do feto. O que é isso? De um lado um 100 mil vidas, de outro lado um alarido. Há vidas e vidas. As 100 mil mortes são típicas das mortes e vidas severinas, vidas descartáveis. Ao passo que vida do embrião é uma vida manipulada por uma religião colonialista, cristã que deu um valor extraordinário a esse embrião transformado em fundamentalismo. Nem sequer da vida da criança interessava, era uma criança certamente parda,  Era uma vida que trazia com ela sem sua vontade. Portanto dois pesos e duas medidas. São duas imagens de uma mesma sociedade e tão perturbadora.

Os seres racializados e sexolizados são sub-humanos. É sabido que no Mediterrâneo morreram 20 mil pessoas que eram imigrantes e nunca houve nenhuma crise. Imaginem se fossem americanos ou europeus. Que morrem um ou dois americanos no Iraque enquanto outros aos milhares.

Vida que vale, vida que é descartável.

Estes formas de desigualdade de poder estão na origem da distância social em que nós nos encontramos. De alguma maneira a distância social agravou-se com a pandemia. Por que ? O vírus agravou as desigualdades sociais. Quem é que morre mais, os presos, as mulheres, os refugiados, as populações negras e pardas. Vamos classificar e dividir e estamos a falar da maioria da população mundial. Água para lavar às mãos quando não há água para beber ou para cozinhar. Confinamento com pouco distância física quando vivem 12 pessoas num barraco. Confinamento a quem pode fazer tele-trabalho. Aqueles que têm que ir para rua porque precisam ganhar para comer no dia seguinte.

A distância cultural legitima a distância social e o que dá sentido a vida. Uma cultura dominante é uma forma de legitimar a sociabilidade de uma sociedade. A cultura dominante pode designar o que é cultura e o que não é. Pode criar a distância cultural de uma maneira muito simples negar a existência de outra cultura. A negação total. Pode reconhecer a existência de outras culturas, de que somos completamente indiferente, obviamente, considerada inferior. Nossas diferenças na cultura dominante trazem hierarquias: homem e mulher, sociedade e natureza,. … A distinção entre arte e artesanato é uma forma de não considerar arte e não entrar no cânone cultural.

Os algoritimos, as mensagens personalizadas em massa e extremamente personalizadas que cada um de nós tem direito a sua própria publicidade e tudo fica de fora ao que não interessa ao consumo. O trabalho das mulheres, a economia informal, camponesa, indígena.

Cultura estatística é uma forma de criar a invisibilidade. A cultura sempre é uma característica da filha pobre ou enjeitada das políticas sociais.

Os projetos e ausência de garantia e a ideia de os criativos querem autonomia ‘numa sociedade capitalista não existe sem condições da autonomia. Muitas formas culturais, não só na produção, exige e é necessária presença. A pandemia impede muito dessa presença. Crise profunda de todos os produtores culturais. A cultura não é necessária, é um bem de luxo. O não presencial obrigou a uma adaptação muito grande. Esta situação online será muito difícil de se manter permanente.

Internet cria problema na cultura porque nós alimentamos o poder capitalista único.

Zoom é um exemplo, Amazon, o primeiro trilionário do mundo. Internet criou a divisão cultural que é uma drama extraordinário nos países. Cerca de 60 por cento das crianças vão sofrer da falta de presença nas escolas. Internet não existe em camadas mais pobres. Escola é a única refeição quente que a criança tinha, mas mantiveram abertas as cantinas. Nós estamos num momento em que as distâncias culturais avançaram. Nas últimas décadas foi possível passar do multiculturalismo indiferente, que tolera aceita imigrantes turcos, argelinos, mas nem pensar que essas culturas podem enriquecer a cultura europeia.

A Europa foi o continente mais violento do mundo. Não tem nenhuma lição dar no sentido da vida. 78 milhões de mortes.

O fundamentalismo religioso é algo que existiu desde o século 17. Agravou-se com a pandemia. Fundamentalismo religioso é forma de dominação cultural. Uma das grandes oportunidades que nos dá, é utopia que vem reabilitar a ideia de alternativa. Nós vivemos nos últimos 40 anos numa grande pandemia, a do neoliberalismo. A pandemia está a dar uma lição. Não é um inimigo, é um pedagogo porque ensina matando, que precisa mudar o modelo de desenvolvimento.

Não podemos ter vergonha de ser utópico. A única maneira de ser realista no século XXI é ser utópico.

O Trauma na Pandemia do Coronavírus

Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas analisadas pelo psiquiatra e psicoterapeuta, Joel Birman

A pandemia representa a maior catástrofe sanitária do século XXI. O século XXI começou com essa pandemia. É o acontecimento fundador, que colocou em questão o espaço social, as nossas ideologias políticas, o retorno a dias de extrema direita no mundo, o questionamento do discurso da ciência através dos negacionistas. Certamente é a maior tragédia da História do Brasil. Se a gente for lembrar que até então as 2 maiores tragédias foram as 35mil mortes ocorridas na gripe espanhola no século passado, no Pós 1a Guerra Mundial e, anteriormente na Guerra do Paraguai onde morreram 50mil pessoas.

No negacionismo entra em jogo aquilo que o Freud chamava o “mecanismo psíquico da recusa”, e que localizava no campo das perversões. Um sujeito perverso ele olha pra algo e em um segundo momento ele não reconhece aquilo que ele percebeu. Ele faz uma clivagem psíquica: perceber mas recusar o mal e a partir daí desafiar a morte, como uma defesa maníaca que essa recusa diante do mal coloca. É muito diferente daquilo que se  chama de ‘denegação’, que se passa num campo comum das neuroses.”

Nós estamos caminhando pra 600 mil mortos nos EUA que é o país em que mais se matou gente nessa pandemia. De forma que esse número de mortes nos EUA ele corresponde a mais mortes do que aconteceram na 1ª e na 2ª Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã, do que todas as grandes guerras que ele participou no século XX.

Os órgãos de segurança sanitária americana anteciparam ao Donald Trump a possibilidade de existir uma grande pandemia, esses relatórios foram jogados na lata do lixo, não foram levados em consideração, com a crença de que isso apenas atrapalharia o crescimento econômico americano.

Todos os grandes economistas em escala planetária afirmam que nós teremos uma recessão igual ou comparável à grande crise do capitalismo em 1929. Essa recessão atual é maior do que a recessão de 2008, a crise do sistema imobiliário que quebrou o sistema. Nós pagamos essa dívida, porque os governos ressarciram os homens do capital financeiro e as empresas do capital financeiro que faliram no planeta.

Em 2018 a OMS considerou que as depressões eram consideradas como sendo a doença mais prevalente internacionalmente que existia. Até então, antes de 2018, esse lugar de doença mais prevalente existente no mundo era ocupado pelo câncer, pelas doenças cardíacas, doenças degenerativas do sistema nervoso,  diabetes, transtornos metabólicos, mas jamais pelo campo da saúde mental. Esse número já era o efeito da crise econômica de 2008, onde o sistema de precarização social foi altamente intensificado em escala global. Onde nós assistimos a esses êxodos dos refugiados que aumentou muito nos últimos 10 ou 15 anos, de pessoas que saíram da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América Latina, em relação aos países ditos mais ricos, EUA ou países europeus, em nome da sobrevivência. Isso se dá com a expansão do capitalismo neoliberal como forma de vida desde os anos 80 e 90 até 2020, e que teve um ponto de inflexão importante na crise de 2008.

Não se pode avaliar os efeitos dessa pandemia sem desconsiderar essa precarização do mercado de trabalho, e das condições de vida, onde elas não tem mais perspectiva de futuro. Onde a preocupação com o  bem estar das pessoas, desapareceu do mapa e a única coisa que importa é a reprodução, a lucratividade empresarial ou a lucratividade do capital econômico financeiro.

Em “A Crítica da Razão Negra”, Achille Mbembe diz: o negro é o nosso vir a ser. Através de toda essa precarização social que todos nós estamos ameaçados hoje vamos todos nos tornar negros. A metáfora da negritude marca todo o planeta nesse mundo neoliberal.

A condução sanitária da pandemia ela está inteiramente articulada com certas formas de governabilidade. Podemos considerar três modalidades diferentes de governabilidade. A primeira  foi a que se deu nos países asiáticos cujos resultados sólidos sobre a pandemia são os melhores do mundo, seja a China, seja o Vietnã, seja a Tailândia, seja a Coreia do Sul… São países que não só respeitaram as regras do discurso da ciência, orquestrada pela OMS, como também eles deram o auxílio às suas populações para que elas pudessem suportar um lockdown radical. Ela tem como background uma forma de organização social dos países asiáticos diferente dos países ocidentais. Na Europa, nos EUA, ou no Brasil, nós somos sociedades individualistas, onde, em geral, quando se fala em Estado você tem aquela famosa formulação: “Hay gobierno? Soy contra”. Quer dizer há aquela condição de ter uma posição resistente em relação ao Estado, em nome de uma certa liberdade individual.

Dentro dessa condição, desses países de tradição cultural individualista: França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha… todos esses países, em nome do discurso da ciência, empetraram o lockdown severo, em diferentes momentos no primeiro semestre do ano passado. Essas medidas políticas de Estado, é a segunda forma de governabilidade.

Agora nós temos essa terceira forma de governabilidade. O Brasil e os EUA deram as costas ao discurso da ciência em nome da produtividade econômica, uma prática, efetivamente, necropolítica, de matar as populações pobres. Sustentada através de uma suposta liberalismo político, de que o Estado estaria abusando do seu direito de querer delinear o controle sobre a vida coletiva, atropelando as liberdades individuais. Nós tivemos não só um negacionismo do discurso da ciência, mas uma espécie de colchão protetor desse discurso amparado efetivamente pelo discurso neopentecostal.

“A população brasileira ela foi exposta a uma dualidade discursiva. Aqueles que dizem que o vírus é uma gripezinha, e aqueles que dizem, não, é uma doença mortal e grave. Essa dupla mensagem, que é esquizofrenogênica, ela provocou um estado confusional na população brasileira.”

A estratégia de defesa do psiquismo diante de qualquer perigo que nos acossa são de duas ordens: transformar o invisível em visível e, segundo, transformar o indizível em dizível. Freud tem um texto famoso chamado “Medição, Sintoma e Angústia”, onde ele tenta mostrar que essa transformação se faz através daquilo que ele denominou de angústia sinal. Na pandemia, nós não podemos desenvolver a angústia sinal. Nós somos afetados por aquilo que eu chamo de uma angústia real, que é a famosa neurose de angústia, ou aquilo que os psiquiatras dos anos 80 passaram a chamar de síndrome do pânico, é a sensação que a gente tem da morte iminente. O que acontece com a COVID é que nós temos uma neurose traumática produzida  por essa incapacidade de antecipação do perigo.

O nosso antigo normal ele não nos representava mais. Essa estrutura hierárquica racial que fazia parte do antigo normal não nos interessa. Nós temos que aproveitar a situação que nós estamos vivendo para colocar em questão esse racismo estrutural.

A primeira formação psíquica é aquilo que eu chamo da neurose de angústia

Em seguida a  gente tem uma segunda formação psíquica chamada de hipocondria que isso quer dizer que nós passamos a perder uma naturalidade dos estímulos e excitações provenientes do nosso corpo. Qualquer tosse que eu tenho, eu acredito que já é a presença do coronavírus, qualquer dor muscular que eu tenha, qualquer febre é presença do coronavírus, qualquer corisa, tudo é uma máquina girando em torno do coronavírus, e isso faz com que, se eu já estava panicado, em plena neurose de angústia, eu fique muito mais, de uma forma permanente, com essas sensações hipocondríacas.

Há uma terceira formação psíquica importante do coronavírus: são as depressões e  a melancolia.Há uma despontecialização da nossa vitalidade. De maneira que a gente teve aqui nessa pandemia situações clínicas muito sérias que aconteceram sobretudo com idosos, pessoas que não podiam ver os seus filhos ou seus netos, seja vivendo com seu companheiro ou companheira, sejam vivendo sozinhos, que a partir de um determinado momento, eles começaram a se sentir esvaziados de si e começavam a se abandonar, sobre a forma de não tomar banho, não se alimentar mais, e muitos deles foram conduzidos ao suicídio. 

Mas uma quarta formação psíquica muito importante é o incremento de rituais obsessivos compulsivos que se dá pelas regras higiênicas estabelecidas pelo discurso da medicina. É uma variante da hipocondria. Elas passam o dia lavando as mãos com sabonete, com sabão, com álcool, uma, duas, N vezes, possíveis e mesmo assim ficando angustiadas o tempo todo se elas não foram imprudentes e foram contaminadas pelo coronavírus.

Uma quinta formação psíquica importante é evidentemente o aumento do número, de beber, de você fumar, tomar tranquilizantes ou antidepressivo, drogas, um incremento do uso de drogas, médicas ou não médicas durante a pandemia, da mesma forma que há um incremento da ingestão de alimentos. Existe uma bulimia que se dá durante a pandemia em que as pessoas estão engordando. Há uma sensação de que através do alimento, através do tranquilizante, do anti depressivo, através da maconha… a gente possa de alguma maneira lançar mão de uma forma de tratamento de si, em uma espécie de ato curativo, para tentar se curar desse mal que ameaça a vida delas.

A sexta formação psíquica importante é o aumento da violência doméstica. Ela se dá sobretudo da parte dos homens, através da violência, pelo exercício da força física, eles dizem assim, esse desamparo, esse desalento não é meu, mas é da minha mulher, da minha companheira ou dos meus filhos. Em que eles acreditam que com isso eles tem a força, e os outros tem a fraqueza. É uma maneira ilusória deles lidarem com sua própria fragilidade diante do mal.

Uma sétima formação psíquica é a reação das crianças à pandemia. Interações sociais das crianças se empobrecem, elas ficam presas a esse universo propriamente doméstico. E isso faz com que as crianças sejam tomadas não só pela angústia e pelas depressões a que eu me referi anteriormente, mas também que as crianças passam a responsabilidade aos seus pais por aquilo que está lhes acontecendo. As crianças tendem a acusar os pais de não terem podido proteger elas dessa perda da capacidade de vida que elas estão tendo, durante mais de um ano.

E a oitava formação psíquica, que eu queria destacar novamente, é a melancolia. Agora ligada a um aspecto muito particular, que tá se colocando hoje, mas vai se colocar mais no futuro, que é a maneira pela qual nós vamos lidar com esses cadáveres. Nossas práticas funerárias atuais, por conta do fato de que as pessoas ao irem a um cemitério elas podem ser contaminadas,  elas se restringem a 1, 2 ou 3 pessoas no máximo, se tanto. De maneira que esses rituais funerários deixam de existir. Segundo Freud, os rituais funerários dignos são condição pro trabalho de luto. O que ele dizia é que quando a gente não consegue fazer o trabalho de luto, nós caímos em uma condição melancólica. Eles ficam na condição de mortos vivos porque eles não tiveram um enterro digno. Pra que a gente possa fazer o nosso trabalho de luto individual, singular, a gente precisa que esses mortos sejam reconhecidos publicamente como mortos, de que a gente preza esses corpos mortos.

Texto transcrito e editado pela cineasta Maria Rita Nepomuceno sobre a fala de Joel Birman, cujo tema tratou do conteúdo do seu livro ‘O Trauma da Pandemia do Coronavirus”, acessível ao público nesse link: Grupo Editorial Record. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

O Trauma na Pandemia do Coronavírus

O link para assistir o debate https://youtu.be/rshGrN3yjRw

O psiquiatra e psicoterapeuta Joel Birman lançou recentemente o livro O Trauma na Pandemia do Coronavírus, com análises sociais, políticas, econômicas, éticas, científicas, e as consequências para a condição humana e a modernidade. Como escritor, Birman foi ganhador do prêmio Jabuti, em 2013, na categoria Psicologia e Psicanálise, com a obra Sujeito na Contemporaneidade.

As políticas neoliberais de destruição dos direitos sociais se fundem às tecnologias de poder que apelam para o complemento do uso da força para realizar as cruzadas morais com mais intensidade. A retórica religiosa de tipo neopentecostal se associa sempre às tendências de fascismo social e ao modo de comando que resultaram na ideia de soluções de distanciamento vertical ao gosto de um darwinismo social atualizado“. Fonte: Conexão UFRJ – artigo Cunca Bocayuva, professor do Nepp-DH.

Joel Birman está construindo, no Collège International de Philosophie, em Paris, uma linha de pesquisa interdisciplinar em psicanálise e filosofia em torno da questão das ‘Novas condições do mal-estar na civilização’. Fonte: Wikipédia.

Por que a favela é cidade

Foto via site Xapuri

Adair Rocha, neste artigo, analisa a ampliação territorial nas cidades e seu significado. Apresenta-nos o pensamento dicotômico entre favela e cidade dentro dos padrões clássicos: o caos urbano se associa ao dualismo e à cidadania e, também, fala da necessária e íntima relação direta entre direito e acesso

“Na cidade multicêntrica: Favela é cidade Racismo é pandemia Cultura é significação Comunicação é comunitária”

A natureza ou o caráter multicêntrico da cidade tende a ampliar suas significações, de potencialidades e de fragilidades para os limites e possibilidades de seus territórios.

De saída, questiona o pressuposto pautante das mídias comerciais que reproduzem a dicotomia classista, classificatória ou moralista, onde o asfalto e a periferia dividem o projeto urbano em enriquecidos e empobrecidos, com a consequente leitura moralista da circulação limite do bem e do mal.

Nesse sentido, a produção do imaginário plasma a presença da cultura escravocrata como “natural” da produção do projeto urbano, num olhar genérico que reproduz a lógica da Casa Grande (asfalto) e da Senzala (favela), com suas variações em cada território. Torna-se mais comum na disposição do asfalto onde, em geral, se situam as instituições, das constituições familiares, institucionais, acadêmicas, comerciais, da qualidade da mobilidade etc.

O sistema hierárquico piramidal pauta as relações do quarto de empregada, situado depois da área de serviço, reduzido a uma cela prisional, ao lugar reservado aos ascensoristas, portarias, caixas, condutores etc. O que leva a entender o barulho das “cotas” raciais, quer nos pré-vestibulares comunitários ou em toda política pública de acesso e suas dificuldades de implantação, ao tempo que a cidade multicêntrica se move na produção de “intelectuais orgânicos” que repensam a cidade, a partir da potência e da fragilidade do seu todo.

Esse texto e contexto da cidade, em tempo pandêmico, escancarou-se. A política pública de saúde e dos quesitos básicos, em geral, são propriedade do asfalto, com condições de isolamento doméstico social, como vacina antes da vacina, com seus cuidados sanitários, garantidos pelo poder econômico e pela infraestrutura pública. Favelas e periferias “se viram” na solidariedade e em parcerias institucionais e suas formas de organização locais. Assim, quando pronunciamos a palavra “cidade”, explicitamos sua inspiração e significado, que é cidadania. Portanto, há relação direta entre direito e acesso.

Daí decorre que a existência das favelas, como parte do projeto urbano, ao pronunciarmos a palavra cidade, ela carece de vir acompanhada de INCOMPLETUDE, no mínimo. Portanto, quando esse imaginário indica “normalidade”, está instituída a lógica da Casa Grande e da Senzala e, em decorrência, a presença da escravidão ainda hoje, como parte do sistema capitalista, como dito antes.

POR QUE FAVELA É CIDADE

O projeto nasce com uma contradição explícita: seu casamento com o cimento armado e a saudade da terra, de recente história, no caso do Brasil e do Rio, na inversão do rural para o urbano, com a tardia chegada da Revolução Industrial por aqui. Coincidindo com a chamada libertação da Escravidão, narrada por diversos autores, a necessidade do trabalho livre, cobrindo o que, sobejamente, se chamava também de indolência “indígena”, tida como preguiçosa para o desenvolvimento do processo social de produção.

Há aí, portanto, um fulcro de natureza cultural ideológica. Na convivência conflitiva de acúmulo e escassez, há que se entender a relação de causa e efeito e, portanto, a “normalidade” do projeto urbano esgarçado, que é reforçada pela necessidade de cuidar do asfalto, reprimindo a favela e a periferia. A expressão SEGURANÇA passa a figurar nas pesquisas de opinião pública como prioridade da cidade. E as demais políticas públicas, de primeira necessidade para o conjunto, fica secundarizada para a favela. Isso gera uma nova categoria: a INCOMPLETUDE, também chamada de ausências, que acabam também “normalizando” a dicotomia do binômio ACESSO/DIREITO.

A singularidade da cidade do Rio é coisa de cinema, desde a gratuidade patrimonial de sua natureza, há também imagem invertida do espelho, usado em Cidade Cerzida, que pro Leblon tem o Vidigal, pra Ipanema tem Cantagalo, pra Rocinha tem São Conrado e Gávea, pro Leme o Chapéu e a Babilônia, o anel que vai do Borel ao Salgueiro para Tijuca, e daí por diante. Assim também, saindo do Galeão, a Linha Vermelha separa um dos grandes polos de parques tecnológicos e de produção do conhecimento, das dezenove favelas da Maré, com sua potência orgânica e intelectual e resistente, convivendo com a ausência do poder público.

Na cidade cerzida e multicêntrica, o espaço urbano está em disputa com a potência dos territórios e da diversidade, que é a identidade da cidade.

Vale lembrar como a cidade vem sendo filmada a partir da favela que é a cidade, inclusive, a de Deus, que Paulo Lins oferece a Fernando Meirelles e que repercute mundo a fora, ao tempo que sugere a carta etnográfica de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, que problematizam o urbanismo crescente.

Abre-se então a possibilidade de perceber a presença da cultura escrava ou escravizadora, em pleno processo urbano, com a “normalidade” da existência da favela, como saída para o projeto urbano desigual, onde, inclusive, vive a maioria da população negra. Santa Marta, Duas Semanas no Morro (Coutinho) e Notícias de uma Guerra Particular (Salles), e ainda, À Margem de uma Imagem (Mocarzel), com a população de rua de São Paulo, reparam e demostram essa evidência escondida pelo imaginário produzido, como ainda demonstra o clássico “Cinco Vezes Favela”.

Diante da evidência, da potência econômica, cultural e criativa da cidade a partir da favela, a pergunta que precisa ser feita refere-se à “normalidade” do tratamento diferenciado no planejamento das políticas públicas para as favelas e periferias, o que facilita a territorialização das fragilidades, que, como dizia Hélio Peregrino, não se deve confundir o sintoma com a causa. Da infraestrutura a todos os equipamentos necessários para o acesso do bem-viver, direito e acesso não podem priorizar o asfalto.

Chegamos então, no furor feuerbachiano, da passagem de não apenas pensar a realidade, mas de transformá-la. Aí, Paulo Freire e Gramsci se encontram, na produção dos novos “intelectuais orgânicos”, via “política de cotas” e os convênios com os pré-vestibulares comunitários, grande parte da favela e da periferia, incluindo a população negra, portanto as pesquisas e os pensares urbanos e os seus dados e cálculos têm o diagnóstico, em grande parte, desde os territórios diversos e plurais da cidade multicêntrica, com as leituras de informação e significação, medidas nas perspectiva infinita das tradições e das possibilidades que movimentam mudanças que quebram hierarquias e fortalecem circularidades no caráter político, religioso e afetivo do cotidiano, com mais acesso e com mais trocas e inclusive interferem nos roteiros e sambas-enredo de carnavais, malandros e heróis, como quase perfeitamente desenvolve o antropólogo Roberto da Matta.

Para essa circulação heterodoxa da cidade, racismo é pandemia, e enquanto a vacina não vem, a pele negra já não se reveste mais de máscaras brancas, como intitula sua obra, Frantz Fanon.

DESCONSIDERANDO, INICIALMENTE

A cidade multicêntrica incorpora e recupera o sentido de cidade-cidadania, que potencializa a diversidade plural e complexa, sem se submeter à dicotomia que falseia a relação acesso e direito.

A lógica urbana centro/periferia ou asfalto/favela que se “escancarou” na pandemia, no entendimento do papel do Estado e no fetiche salarial do poder econômico, já não mais sustenta ou resiste ao papel de significação da cultura e da informação a partir do explicitado na ideia de território e de pertencimento, como profetizou, acadêmica e politicamente, o geógrafo Milton Santos, que também, entre outros, inspira “Betinho” e os arautos da democracia ao embate e combate político da fome, cujo mapa está de volta.

A cidade multicêntrica guarda o coração da cidade também percorrendo os interstícios do cimento armado, que consegue, muitas vezes, embrutecer a relação com a natureza. Os territórios onde habitam os empobrecidos é mais afeito à festa que presenteia o comum, em mutirão ou nas simbologias que mantêm as tradições, regadas pelo tempero dos antepassados e pelos ritmos que convivem com o contemporâneo, saboreando o gosto da montanha e da comida, na cidade assassina, como diz Krenak, e onde só se respira a sordidez e a perversão da negação da vida e sem o namoro com a terra.

Terra é mãe e sente a necessidade de disciplinar os filhos, como deveríamos entender a pandemia. Terra é também a medida do transcendente. Somos humanos divorciados do cosmos e buscamos muletas. Portanto, o caos urbano se associa ao dualismo – ser humano e espiritual.

A cidade multicêntrica é essa ponte!

Matéria publicada originalmente em Xapuri

Adair Rocha integra o coletivo Estados Gerais da Cultura. Nascido em Pouso Alegre, em 1950, vive há bastante tempo no Rio onde firmou forte interação da atividade acadêmica com o processo sociopolítico e cultural. É pós-doutor em comunicação pela UFRJ; professor adjunto de na PUC-Rio e na UERJ, ambas no departamento de Comunicação Social. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.