Os projetos urbanos brasileiros reproduzem ainda a lógica da Casa Grande (asfalto) e Senzala (favela) com suas variações em cada território. O termo ‘ cidade multicêntrica’ cunhado pelo professor de Comunicação da PUC-Rio, e da UERJ, Adair Rocha, dá significado às favelas como verdadeiras cidades dentro de uma cidade, ambas dependentes uma da outra. Uma interessante tese sobre o racismo urbano-territorial, suas consequências e interrelações sociais. O 36o. encontro dos Estados Gerais da Cultura promove um diálogo direto entre Adair Rocha e os sujeitos da multicentralidade representados por: Itamar Silva e Raul Santiago.
“O contexto da cidade, em tempo pandêmico, escancarou-se. A política pública de saúde e dos quesitos básicos, em geral, são propriedade do asfalto, com condições de isolamento doméstico social, como vacina antes da vacina, com seus cuidados sanitários, garantidos pelo poder econômico e pela infraestrutura pública. Favelas e periferias “se viram” na solidariedade e em parcerias institucionais e suas formas de organização locais. Assim, quando pronunciamos a palavra “cidade”, explicitamos sua inspiração e significado, que é cidadania. Portanto, há relação direta entre direito e acesso”, pontua o professor. O termo Cidade Multicêntrica é verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco. Se você quer ler mais sobre o assunto acesse a matéria Por que favela é cidade.
Adair Rocha integra o coletivo Estados Gerais da Cultura. Nascido em Pouso Alegre, em 1950, vive há bastante tempo no Rio onde firmou forte interação da atividade acadêmica com o processo sociopolítico e cultural. É pós-doutor em comunicação pela UFRJ; professor adjunto de na PUC-Rio e na UERJ, ambas no departamento de Comunicação Social. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.
Raul Santiago é um dos 50 profissionais mais criativos do Brasil pela revista WIRED (2020). Gestor de projetos sociais do terceiro setor, produtor cultural e audiovisual, consultor de marketing, ativista pelos direitos humanos, mudanças climáticas, negritudes, vida na favela e empresário – CEO da Agencia Brecha – Hub de Favela.
Itamar Silva é comunicador e representa o Grupo ECO, Santa Maria, criado em 1976. Foi coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Itamar Silva nasceu e mora na favela Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro. Desde os anos 1970 participa dos movimentos sociais e chegou a ser presidente e diretor da Associação de Moradores ao longo da década de 80. Participou de importantes documentários realizados pelo cineasta Eduardo Coutinho e outros, bem como de seminários nacionais e internacionais.
Num encontro histórico na luta pela vida de milhares de brasileiros, os Estados Gerais da Cultura, médicos sanitaristas, intelectuais e a igreja entregaram ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o manifesto “Vida Acima de Tudo“. O ato solene de entrega foi feito online simbolicamente pelas mãos de Dom Mauro Morelli, bispo católico que se dedica às causas sociais.
Num discurso emocionado e eloquente de alguém que passou mais de 40 anos de sua vida defendendo as comunidades periféricas, quilombolas e excluídos, Dom Mauro ressaltou a importância desse encontro, como um grande passo de cidadania no Brasil, sobretudo pelo perfil dos representantes reunidos com um único propósito de bem estar social, num sadio e harmônico pluralismo.
“Somos centenas e milhares de pessoas, de crenças diferentes, de não crentes, de posições ideológicas das mais diversificadas”, ressaltou ele. “Assim é a democracia. Uma sociedade formada pelas diferenças comprometidas em resgatar a cada dia a dignidade e a esperança”.
Mais adiante lembrou que o Poder é um serviço e não um meio de ganhar a vida. “Queremos, sim, uma República que não seja do setor privado e nem particular. Queremos que se trate com o máximo respeito aquilo que é de todos e para o bem de todos. Queremos que uma sociedade pluralista reine com Vida Acima de Tudo”.
A carta aberta entregue a Felipe Santa Cruz já têm mais de 140 mil assinaturas de cientistas, médicos, políticos, personalidades de destaque até a presente data do encontro, em menos de dois dias que circulou. Mas além de importantes cientistas, artistas, assinam também simples e anônimos cidadãos brasileiros que se sentem sufocados, indignados, diante da tragédia da pandemia e o descaso do governo em relação às políticas de prevenção para frear a disseminação do Covid !9.
A médica sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, Lucia Regina Souto, que preside o Centro de Estudos de Saúde, alertou para situação intolerável que o povo brasileiro enfrenta, com a triste realidade de chegar ao patamar de 2000 mortos por dia. “O Brasil não pode se calar diante dessa calamidade. O governo está com projeto de saúde intencional”, afirmou indignada.
Regina ainda complementa: “nós temos hoje um Sistema Único de Saúde que teria condições de ser exemplar e se não fosse a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantã, há tempos atrás, terem feito seus contratos para produzir as vacinas que estão hoje em território nacional, não teríamos nem esta disponibilidade de agora, no entanto, muito aquém do que necessário, finalizou o seu depoimento, reforçando o apoio a Vida Acima de Tudo. “Estamos hoje irmanados com todos que estão aqui porque não há espaço para tolerar os inúmeros crimes de responsabilidade contra saúde pública brasileira e a vida da população”.
Ao receber o documento, Felipe Santa Cruz garantiu que vai levar a carta aberta ao Conselho Federal da Ordem e solicitar que a OAB faça a sua adesão formal ao documento e a divulgação. “Os advogados brasileiros estão numa batalha pela sobrevivência física das famílias brasileiras e, sobretudo da Democracia”. Estiveram presentes, além de Felipe Santa Cruz, Dom Mauro Morelli e a médica Lucia Regina Souto, o cineasta Silvio Tendler, o professor da UFRJ, Adair Rocha, a jurista e professora, Carol Proner, o jornalista Marcelo Auler, a cineasta e produtora Martha Alencar. Assista abaixo o encontro na íntegra e não deixe assinar o nosso manifesto no link inicial.
Leonardo Boff é filósofo, teólogo e escritor e destacou-se por defender a Teologia da Libertação no Brasil. Também conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos dos pobres e excluídos.
Boff pertenceu a Ordem dos Frades Menores e foi ordenado sacerdote em !964. Intelectual ativo e contestador foi condenado pelo Vaticano em 1985 ao “silencioso obsequioso” por defender conceitos teológicos sobre a doutrina católica, com respeito à hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder. Essa posição lhe rendeu um processo dirigido por Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI.
Atualmente, dedica-se mais às questões ambientais. Durante a Cerimônia do Encantamento, homenagem aos artistas mortos vítima do Covid 19, Leonardo Boff lembra nossa condição de microcosmos dentro do macrocosmos, quando diz que é a oportunidade de vivermos um novo tempo, no qual a vida humana e próprio planeta possam ser mais valorizados e não o consumo
O encontro contará com a mediação de Adair Rocha, escritor e professor das UERJ e PUC-Rio. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.
O vigésimo sexto encontro dos Estados Gerais da Cultura completa-se com a música da cantora, compositora e arte-educadora Thayana Barbosa, uma reflexão lida pelo poeta, ativista e ator Eduardo Tornaghi, coordenação de nosso idealizador e patrono, o cineasta utopista Silvio Tendler e mediação com o público nas redes sociais de Janine Malanski.
Adair Rocha, neste artigo, analisa a ampliação territorial nas cidades e seu significado. Apresenta-nos o pensamento dicotômico entre favela e cidade dentro dos padrões clássicos: o caos urbano se associa ao dualismo e à cidadania e, também, fala da necessária e íntima relação direta entre direito e acesso
“Na cidade multicêntrica: Favela é cidade Racismo é pandemia Cultura é significação Comunicação é comunitária”
A natureza ou o caráter multicêntrico da cidade tende a ampliar suas significações, de potencialidades e de fragilidades para os limites e possibilidades de seus territórios.
De saída, questiona o pressuposto pautante das mídias comerciais que reproduzem a dicotomia classista, classificatória ou moralista, onde o asfalto e a periferia dividem o projeto urbano em enriquecidos e empobrecidos, com a consequente leitura moralista da circulação limite do bem e do mal.
Nesse sentido, a produção do imaginário plasma a presença da cultura escravocrata como “natural” da produção do projeto urbano, num olhar genérico que reproduz a lógica da Casa Grande (asfalto) e da Senzala (favela), com suas variações em cada território. Torna-se mais comum na disposição do asfalto onde, em geral, se situam as instituições, das constituições familiares, institucionais, acadêmicas, comerciais, da qualidade da mobilidade etc.
O sistema hierárquico piramidal pauta as relações do quarto de empregada, situado depois da área de serviço, reduzido a uma cela prisional, ao lugar reservado aos ascensoristas, portarias, caixas, condutores etc. O que leva a entender o barulho das “cotas” raciais, quer nos pré-vestibulares comunitários ou em toda política pública de acesso e suas dificuldades de implantação, ao tempo que a cidade multicêntrica se move na produção de “intelectuais orgânicos” que repensam a cidade, a partir da potência e da fragilidade do seu todo.
Esse texto e contexto da cidade, em tempo pandêmico, escancarou-se. A política pública de saúde e dos quesitos básicos, em geral, são propriedade do asfalto, com condições de isolamento doméstico social, como vacina antes da vacina, com seus cuidados sanitários, garantidos pelo poder econômico e pela infraestrutura pública. Favelas e periferias “se viram” na solidariedade e em parcerias institucionais e suas formas de organização locais. Assim, quando pronunciamos a palavra “cidade”, explicitamos sua inspiração e significado, que é cidadania. Portanto, há relação direta entre direito e acesso.
Daí decorre que a existência das favelas, como parte do projeto urbano, ao pronunciarmos a palavra cidade, ela carece de vir acompanhada de INCOMPLETUDE, no mínimo. Portanto, quando esse imaginário indica “normalidade”, está instituída a lógica da Casa Grande e da Senzala e, em decorrência, a presença da escravidão ainda hoje, como parte do sistema capitalista, como dito antes.
POR QUE FAVELA É CIDADE
O projeto nasce com uma contradição explícita: seu casamento com o cimento armado e a saudade da terra, de recente história, no caso do Brasil e do Rio, na inversão do rural para o urbano, com a tardia chegada da Revolução Industrial por aqui. Coincidindo com a chamada libertação da Escravidão, narrada por diversos autores, a necessidade do trabalho livre, cobrindo o que, sobejamente, se chamava também de indolência “indígena”, tida como preguiçosa para o desenvolvimento do processo social de produção.
Há aí, portanto, um fulcro de natureza cultural ideológica. Na convivência conflitiva de acúmulo e escassez, há que se entender a relação de causa e efeito e, portanto, a “normalidade” do projeto urbano esgarçado, que é reforçada pela necessidade de cuidar do asfalto, reprimindo a favela e a periferia. A expressão SEGURANÇA passa a figurar nas pesquisas de opinião pública como prioridade da cidade. E as demais políticas públicas, de primeira necessidade para o conjunto, fica secundarizada para a favela. Isso gera uma nova categoria: a INCOMPLETUDE, também chamada de ausências, que acabam também “normalizando” a dicotomia do binômio ACESSO/DIREITO.
A singularidade da cidade do Rio é coisa de cinema, desde a gratuidade patrimonial de sua natureza, há também imagem invertida do espelho, usado em Cidade Cerzida, que pro Leblon tem o Vidigal, pra Ipanema tem Cantagalo, pra Rocinha tem São Conrado e Gávea, pro Leme o Chapéu e a Babilônia, o anel que vai do Borel ao Salgueiro para Tijuca, e daí por diante. Assim também, saindo do Galeão, a Linha Vermelha separa um dos grandes polos de parques tecnológicos e de produção do conhecimento, das dezenove favelas da Maré, com sua potência orgânica e intelectual e resistente, convivendo com a ausência do poder público.
Na cidade cerzida e multicêntrica, o espaço urbano está em disputa com a potência dos territórios e da diversidade, que é a identidade da cidade.
Vale lembrar como a cidade vem sendo filmada a partir da favela que é a cidade, inclusive, a de Deus, que Paulo Lins oferece a Fernando Meirelles e que repercute mundo a fora, ao tempo que sugere a carta etnográfica de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, que problematizam o urbanismo crescente.
Abre-se então a possibilidade de perceber a presença da cultura escrava ou escravizadora, em pleno processo urbano, com a “normalidade” da existência da favela, como saída para o projeto urbano desigual, onde, inclusive, vive a maioria da população negra. Santa Marta, Duas Semanas no Morro (Coutinho) e Notícias de uma Guerra Particular (Salles), e ainda, À Margem de uma Imagem (Mocarzel), com a população de rua de São Paulo, reparam e demostram essa evidência escondida pelo imaginário produzido, como ainda demonstra o clássico “Cinco Vezes Favela”.
Diante da evidência, da potência econômica, cultural e criativa da cidade a partir da favela, a pergunta que precisa ser feita refere-se à “normalidade” do tratamento diferenciado no planejamento das políticas públicas para as favelas e periferias, o que facilita a territorialização das fragilidades, que, como dizia Hélio Peregrino, não se deve confundir o sintoma com a causa. Da infraestrutura a todos os equipamentos necessários para o acesso do bem-viver, direito e acesso não podem priorizar o asfalto.
Chegamos então, no furor feuerbachiano, da passagem de não apenas pensar a realidade, mas de transformá-la. Aí, Paulo Freire e Gramsci se encontram, na produção dos novos “intelectuais orgânicos”, via “política de cotas” e os convênios com os pré-vestibulares comunitários, grande parte da favela e da periferia, incluindo a população negra, portanto as pesquisas e os pensares urbanos e os seus dados e cálculos têm o diagnóstico, em grande parte, desde os territórios diversos e plurais da cidade multicêntrica, com as leituras de informação e significação, medidas nas perspectiva infinita das tradições e das possibilidades que movimentam mudanças que quebram hierarquias e fortalecem circularidades no caráter político, religioso e afetivo do cotidiano, com mais acesso e com mais trocas e inclusive interferem nos roteiros e sambas-enredo de carnavais, malandros e heróis, como quase perfeitamente desenvolve o antropólogo Roberto da Matta.
Para essa circulação heterodoxa da cidade, racismo é pandemia, e enquanto a vacina não vem, a pele negra já não se reveste mais de máscaras brancas, como intitula sua obra, Frantz Fanon.
DESCONSIDERANDO, INICIALMENTE
A cidade multicêntrica incorpora e recupera o sentido de cidade-cidadania, que potencializa a diversidade plural e complexa, sem se submeter à dicotomia que falseia a relação acesso e direito.
A lógica urbana centro/periferia ou asfalto/favela que se “escancarou” na pandemia, no entendimento do papel do Estado e no fetiche salarial do poder econômico, já não mais sustenta ou resiste ao papel de significação da cultura e da informação a partir do explicitado na ideia de território e de pertencimento, como profetizou, acadêmica e politicamente, o geógrafo Milton Santos, que também, entre outros, inspira “Betinho” e os arautos da democracia ao embate e combate político da fome, cujo mapa está de volta.
A cidade multicêntrica guarda o coração da cidade também percorrendo os interstícios do cimento armado, que consegue, muitas vezes, embrutecer a relação com a natureza. Os territórios onde habitam os empobrecidos é mais afeito à festa que presenteia o comum, em mutirão ou nas simbologias que mantêm as tradições, regadas pelo tempero dos antepassados e pelos ritmos que convivem com o contemporâneo, saboreando o gosto da montanha e da comida, na cidade assassina, como diz Krenak, e onde só se respira a sordidez e a perversão da negação da vida e sem o namoro com a terra.
Terra é mãe e sente a necessidade de disciplinar os filhos, como deveríamos entender a pandemia. Terra é também a medida do transcendente. Somos humanos divorciados do cosmos e buscamos muletas. Portanto, o caos urbano se associa ao dualismo – ser humano e espiritual.
Adair Rocha integra o coletivo Estados Gerais da Cultura. Nascido em Pouso Alegre, em 1950, vive há bastante tempo no Rio onde firmou forte interação da atividade acadêmica com o processo sociopolítico e cultural. É pós-doutor em comunicação pela UFRJ; professor adjunto de na PUC-Rio e na UERJ, ambas no departamento de Comunicação Social. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.