‘A gente combinamos de não morrer’

foto via Feira do Livro de Porto Alegre – todos os direitos reservados

A frase original é marcada por essa dicção popular: “A gente combinamos de não morrer”.  São marcas de oralidade que eu quero levar pro texto. Para chegar a esse conceito, de “escrevivência”, eu vou pra História das mulheres escravizadas na casa grande. O corpo delas estava inscrito na economia de produção, do lazer, do prazer, da educação… Seus corpos produziram trabalhos. Mas não só os seus corpos: as suas palavras. A palavra dessas mulheres vai influenciar muitíssimo a nacionalidade brasileira a partir da língua, é o que Lélia Gonzalez fala: que nós falamos o pretoguês.

Um autor que a gente lê com muito cuidado é o Gilberto Freyre. Ele fala em “Casa Grande & Senzala” que a descendência dos colonizadores aprendia a falar o português muito mais com essas mulheres do que nos próprios espaços de educação que a casa grande reservava pra eles, que eram os colégios religiosos. Elas foram também as primeiras professoras da prole da casa grande. Elas tinham que contar as histórias pra prole da casa grande. Tinham seus corpos escravizados e tinham também a palavra direcionada, a palavra delas cumpria uma função.

A nossa “escrevivência” não é pra adormecer os da casa grande, e sim para acordá-los de seus sonhos injustos. A nossa palavra hoje quer borrar essa palavra que ficou pra trás, essa palavra escravizada, mas ao mesmo tempo essa palavra escravizada que nos deu sustança, que foi o nosso fio de prumo.

A potência da palavra dessas mulheres também foi usada no processo de escravização. Então até a palavra delas tinha um dono, era o senhor. Se elas quisessem guardar silêncio naquela noite, não podiam. Pelo menos enquanto aquelas crianças não dormissem. É a famosa Mãe Preta tão incensada na literatura brasileira, que pensa nessa mulher com tanta abnegação.

O que que eu quero contrapor a isso? A escrita das mulheres negras. É como se a nossa escrita borrasse esse quadro. Nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para incomodá-los nos seus sonos injustos. O que as mulheres negras estão produzindo hoje a partir de seus lugares de pertença, é uma produção que não tem esse compromisso de apaziguar a casa grande, pelo contrário, incomoda a casa grande. Nossa escrevivência nasce dessa coletividade negra que traz toda uma herança, uma ancestralidade, dos povos afro-diaspóricos.

Eu quero pensar a escrevivência político-partidária das mulheres negras. Como a morte de Marielle, o sacrifício de Marielle, acabou sendo fecundante. A gente sabe que a presença das mulheres negras em partidos políticos elas não são facilitadas. Essa escrivência ainda é uma busca de afirmação. Nas convenções partidárias elas não recebem tanto apoio. E é bom lembrar que a presença de mulheres negras em partidos políticos populariza esses partido. Nós sabemos muito bem como Marielle popularizou o partido dela, como Benedita popularizou o partido dela…

A política cultural que Tia Ciata fez  marcou o Rio de Janeiro e a cultura brasileira. Qualquer brasileiro que saia do Brasil, seja ele branco ou negro, a primeira coisa que se pergunta é se ele sabe sambar. E se a cultura africana marca profundamente a nacionalidade brasileira, ela tem que marcar profundamente também os espaços de poder.

Como essa escrivivência negra se dá na literatura brasileira, na própria instituição literária? Como a crítica literária trata essa produção de autoria negra? Que produção de autoria negra essa crítica literária se debruça pra ler, pra compreender, pra valorizar. Não é comum as escritoras negras estarem presentes nessa organização das feiras literárias. Quem acompanha a história da FLIP sabe que isso se deu apenas a partir do momento em que as intelectuais negras passaram a reivindicar esses espaços.

Apesar do primeiro romance brasileiro ter sido escrito por uma autora negra, que é Maria Firmina dos Reis. Nós temos tido avanços. A UFRJ conceber o título de Doutor Honoris Causa a Carolina Maria de Jesus eu acho que isso denota um avanço mas não denota que nós estamos satisfeitas, que isso nos basta.

Na Universidade, os reitores, os chefes de departamento, são ocupados por homens, depois tem uma presença das mulheres brancas, e raramente das mulheres negras. Sem falar na pobreza em si, grande parte das mulheres negras ainda está desempenhando funções importantíssimas, mas subalternizadas pelo imaginário da sociedade brasileira.

Eu não gosto muito do termo “contribuição”, contribuição das culturas negras, ou a contribuição dos povos africanos na formação brasileira. Não é contribuição! É presença ativa mesmo.

Hoje aos 74 anos eu vejo uma menina vivendo as mesmas angústias: que é um discurso que ainda precisa afirmar a condição dela como negra, precisa ainda afirmar a dignidade dela enquanto pessoa negra. Quando nós vamos realmente nos construir enquanto nação? Quando nós vamos realmente poder pensar: existe uma pátria mãe gentil? Para todas, para todos e para todes? Há uma certa dificuldade nos espaços de poder na sociedade brasileira de encampar essa questão da negritude brasileira, não só no nível do discurso, mas no nível das ações. Me chamou muita atenção que intelectuais brasileiros, que conhecem a história da escravização no Brasil, por que no momento de assinatura das ações afirmativa eles recusaram? Quando as cotas passaram a ser implementada nas Universidades houve um abaixo-assinado com intelectuais, artistas brasileiros, é fácil acessar essa lista pra ver. O abaixo-assinado gerou um espanto para muitos de nós.

Fica uma certa curiosidade e até uma dolorosa incompreensão como intelectuais brasileiros recusaram-se a apoiar as cotas, e a gente tem sempre afirmado que a questão negra no Brasil não é uma questão para o negro resolver, é uma questão para  a sociedade brasileira resolver. Assim como a questão indígenas não é uma situação para os povos indígenas resolverem, é uma situação para a nação inteira resolver.

As ações afirmativas começam a ser discutidas em termos de Estado brasileiro, no governo Fernando Henrique e vão se concretizar com mais veemência no governo Lula e no governo Dilma. As pessoas pensavam as ações afirmativas somente como a questão das cotas. Um dos efeitos das ações afirmativas no campo da saúde foi a obrigatoriedade do teste para detectar a anemia falciforme na medida em que tem uma incidência muito forte na população negra. As ações afirmativas não nascem de cima pra baixo. A lei 10.639 que institui o estudo das culturas africanas e afro brasileiras, e mais tarde das culturas indígenas, não nasceu de cima. Essas demandas populares são atualizadas em governos. Houve pesquisadores que trabalharam com Carolina de Jesus que não estavam no movimento negro. Mas essa reivindicação vem sobretudo de alunos que ingressaram pelas cotas. Isso também acontece dentro dos partidos, reserva de vagas para mulheres, negros e indígenas.Hoje também a gente já vai perceber um número maior de pessoas negras apresentando produtos, saindo dos lugares comuns na propaganda.

Qualquer atitude do Estado não é favor. É muito estranho dizer que o Estado está demarcando as terra indígenas. As comunidades indígenas é que teriam direito de demarcar terras para brancos. Não é favor. Não é privilégio. O Estado está devolvendo tardiamente e de maneira incompleta o que sempre foi tomado dessas populações.

Foi muito simbólica a minha candidatura na Academia Brasileira de Letras. Eu não entrei mas eu tenho certeza que vai ter um momento que a Academia vai ter que pensar o que foi a minha candidatura. Muitas pessoas me ligaram: você não vai dizer nada? Não. O interessante não é ser o primeiro, mas é abrir caminhos. Eu tenho certeza que a minha candidatura abre caminho para organizar outras candidaturas. Eu acredito que um candidato tem que ser avaliado a partir das obras. O resto, se acontece, não faz sentido. Quem perdeu foi a Academia, de afirmar a diversidade da literatura brasileira, perdeu o bonde da História, infelizmente. Não há como conceber uma casa que represente a literatura brasileira, inclusive com a ausência de mulheres. O mundo está mudando e a Academia vai mudar também.

Estamos o tempo todo buscando e sendo impedidos em nosso direito de ser. Emocionalmente isso é muito doloroso. Ceifa nossa saúde emocional e nossa saúde física. Nós não podemos falhar, a sociedade não tem nenhuma complacência conosco. Estamos o tempo todo buscando o direito de sermos, com nossas potencialidades e imperfeições. O ser humano é feito de potencialidades e de limitações.

Me angustia muito o modo como Carolina morreu, ela morreu de síndrome asmática. Por mais que ela tenha dito e escrito, ficou muita coisa engasgada. Ela poderia ter mais, ser mais, dizer mais. Se ela tivesse tido a recepção de uma carreira mais duradoura, sem sombra de dúvida o direito de ser dela teria sido vivido plenamente. Dizem que a vida começa aos 40 anos. A vida começa aos 70. Porque foi depois dos 70 anos que eu passei a ter mais oportunidades na literatura.

Escrever é uma maneira de sangrar. Escrever é um processo muito doloroso. As personagens que eu crio são personagens que estão muito próximos de uma vivêcia coletiva, muitas coisas não são uma vivência pessoal, eu componho com uma herança histórica que eu trago em mim. Mas também é o que me dá alívio. Então escrever é a minha zona de prazer e é também a minha cena de dor. Esse nó na garganta ele tem que ser muitas vezes engulido para sair de uma outra forma.

Grande parte dos meus morrem sufocados, essa morte física e simbólica. Quando você não tem esse espaço para ser. Isso dá uma canseira, um desânimo, um aborrecimento. Ajuntando sua precariedade você constroe algo melhor pra você. O silêncio dói mas ele nos compõe. Muitas vezes é preciso ficar silenciosos. As comunidades quando estão silenciosas, estão se fortalecendo, se recuperando, se alimentando. O silêncio e o grito nos constituem, a literatura é muito isso também, silêncio e grito.

Ideias de Conceição Evaristo, com edição da cineasta Maria Rita Nepomuceno, que faz parte dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

Terezinha nunca foi Tereza

Tudo que escrevo me reporta a mulher que eu queria conhecer cebolinha. Porque penso que nascermos cebolinhas e criamos camadas que engrossam e craquelam. E que provocam choro, paixão ou ojeriza.

Somos isso. Enormes cebolas. E eu queria ter conhecido Terezinha enquanto era cebolinha. Por certo que a cebolinha estava lá quando a conheci, mas certo também é que nossas camadas externas resguardam o que somos bem no início.

Eu conheci Terezinha já com muitas camadas e choros.
Sei que não foi criança por muito tempo. Que teve muitas madrastas. Sei que sua avó fora escrava. Já Terezinha, era livre na lei, mas presa na vida.

Foi doméstica, sonhava ser freira. Talvez porque fosse um caminho para o estudo. Desconheço uma mulher com mais garra. Tanto assim que adoecia quando não tinha o que fazer.

E foi logo entre as freiras que descobriu a tortura por ser diferente. Chegou pequena, no colégio. Criada sem mãe, que fugiu quando ela era muito pequena, chupava o dedão. Aliás, como quase toda criança, preta ou branca. Mas no imaginário religioso, a tortura, a dor, a privação e mesmo as provações sempre foram pretas. As freiras lhe queimavam os dedos no fogão. Foi assim que perdeu esse direito de criancice. Perdeu muitos daí para trás ou para frente.

Estudou o primeiro ano escolar com as freiras, aprendeu a ler. Pelo que analiso hoje, tinha leve dislexia. Trocava fonemas na fala e escrita e evitava a escrita por ter “letra ruim”. Foi logo para a cozinha, para o esfregão e o tanque. Foi doméstica desde os oito anos. Dormia no emprego e sabia que só sairia de lá para casar. Essa espécie de sentença imputada às meninas pretas desde sempre. E o casamento, como habeas corpus, comutava a pena. E todo o mais era agravante.

Era menina inteligente, e gente inteligente sofre quando é gente preta. Preto precisava nascer sem entender o que lhe espera a vida. Mas, a biologia não faz distinção. Então lá vem nascendo outro negro cuja capacidade mental não lhe detrairá em nada dos demais humanos, mas sabe-se lá o porquê, vai sim.

Aprendemos. E a Terezinha aprendeu com proficiência a lavar os lençois mais brancos, a quarar, a alvejar com anil, a bater a roupa com a força do ódio dos sem perspectiva. Aprendeu a cozinhar o banquete dos ricos, as sobremesas de fora. Aprendeu a limpar os lugares onde ninguém nunca veria. A costurar à mão e com a máquina.

E aprendeu a andar com as costas eretas, a barriga prensada e o quadril encaixado, quase como uma bailarina.

Coisas que as meninas aprendiam a fazer. A estrutura ensinava a mulher a ser dona de casa, a mulher preta a ser doméstica. Cresceu bonita, a menina Terezinha. O que não foi de grande ganho. Porque beleza que ninguém vê é só o que? Nem é.

A vida era cuidar dos outros, como o foi para sua avó, suas tias, suas parentas todas desde a primeira no porão de um navio negreiro.

Lia pouco, ou melhor, com dificuldade, mas sempre lia. Lia muito. E narrava histórias cheias de intenções.
Seria boa escritora se soubesse que podia. Casou aos 21, tendo como herança, pelos muitos anos de trabalho, um baú de madeira com um enxoval finíssimo. Ofertado pela patroa como promessa cumprida. Uma bonificação. Uma alforria premiada.

E, por certo, esse baú virou para os descendentes “O Baú”. Muitos não chegaram a vê-lo, foi roubado por uma parenta, dessas que acham que merecem algo por ser quem é. E com ele se foi parte do enxoval, outra lenda que sempre povoou o pensamento dos que vieram depois.

Creio que Terezinha da Silva nasceu para criar, cuidar, ensinar, benzer e orar.
Quantas dores curou com balbucios inaudíveis, água e ervas surradas ao ar.

Quantas dores de si nunca conseguiu tirar. Mas dizia sobre opressão. Sobre luta de classes. Foi mulher sofrida, casada, traída, engravidada como prisão perpétua e a condição de não impor regras sobre si. Mas foi forte. Resistiu aos frios paulistanos, aos despejos, aos cortiços, à favela. Numa evolução regressiva da condição social. Da cidadania incompleta.

Não fosse pela dislexia seguiria Carolina de Jesus, pois que escrevia, com a voz, o mundo negro, a vida da mulher negra e periférica, a fome e o medo da vida privada. Da vida privada de vida.

Aprendi a ler nesse livro. Li muito as histórias de Terezinha, menina, moça e mulher. Conheci os abusos físicos e psicológicos; aprendi sobre ter que vestir a roupa que impede a dúvida. Sobre como não morrer de fome com o que serve o terreno baldio. Aprendi matemática, conferida com rapidez de calculadora. E aprendi a não mentir, roubar ou prejudicar.

Li Terezinha da Silva, nas garrafas de bebida alcoólica e na disposição em acordar disposta e bem arrumada para pegar o coletivo, sem nunca faltar um dia ao trabalho, mesmo doente.

Aprendi o significado de ser mãe, e mulher menos que mãe. E aprendi que a vida é um eterno retorno.

Terezinha nunca foi Tereza. Nasceu diminutiva no nome. Superlativa na luta e na capacidade pedagógica.
Talvez eu não saiba escrever o suficiente, como Conceição Evaristo e suas narrativas mescladoras do real e do fantástico. Mas inegavelmente essa Terezinha daria um romance repleto de detalhes que eu nem me atrevo a enfeiar por não saber como fazer.

Talvez quando chegar a minha hora de ser história, alguém de mim me escreva e descasque minhas camadas e chore por mim e por aquela cebolinha chamada Terezinha.

Texto é de Cristiane Alves que é uma das convidadas para participar do encontro com a escritora e romancista Conceição Evaristo, pelos Estados Gerais da Cultura: ‘A gente combinamos de não morrer’. Cristiane tem presente em seus escritos o drama das mulheres negras ao longo da história.

Cristiane Alves será apresentada segundo suas próprias palavras. “Cristiane de Assis Macedo Alves. Mulher preta, mãe, irmã, esposa e filha (necessariamente nessa ordem). Geógrafa, professora de Geografia e Gestora ambiental. Especialista em Educação Especial na área de Altas Habilidades/Superdotação.Feminista por convicção, resistência (sem que exista outra opção) e sobrevivente. Porque não há minoria que não lute muitas lutas infinitamente, enquanto dure.Escreve como colunista no GGN desde 2018 algo pelo qual sente imenso orgulho.

Por que a favela é cidade

Foto via site Xapuri

Adair Rocha, neste artigo, analisa a ampliação territorial nas cidades e seu significado. Apresenta-nos o pensamento dicotômico entre favela e cidade dentro dos padrões clássicos: o caos urbano se associa ao dualismo e à cidadania e, também, fala da necessária e íntima relação direta entre direito e acesso

“Na cidade multicêntrica: Favela é cidade Racismo é pandemia Cultura é significação Comunicação é comunitária”

A natureza ou o caráter multicêntrico da cidade tende a ampliar suas significações, de potencialidades e de fragilidades para os limites e possibilidades de seus territórios.

De saída, questiona o pressuposto pautante das mídias comerciais que reproduzem a dicotomia classista, classificatória ou moralista, onde o asfalto e a periferia dividem o projeto urbano em enriquecidos e empobrecidos, com a consequente leitura moralista da circulação limite do bem e do mal.

Nesse sentido, a produção do imaginário plasma a presença da cultura escravocrata como “natural” da produção do projeto urbano, num olhar genérico que reproduz a lógica da Casa Grande (asfalto) e da Senzala (favela), com suas variações em cada território. Torna-se mais comum na disposição do asfalto onde, em geral, se situam as instituições, das constituições familiares, institucionais, acadêmicas, comerciais, da qualidade da mobilidade etc.

O sistema hierárquico piramidal pauta as relações do quarto de empregada, situado depois da área de serviço, reduzido a uma cela prisional, ao lugar reservado aos ascensoristas, portarias, caixas, condutores etc. O que leva a entender o barulho das “cotas” raciais, quer nos pré-vestibulares comunitários ou em toda política pública de acesso e suas dificuldades de implantação, ao tempo que a cidade multicêntrica se move na produção de “intelectuais orgânicos” que repensam a cidade, a partir da potência e da fragilidade do seu todo.

Esse texto e contexto da cidade, em tempo pandêmico, escancarou-se. A política pública de saúde e dos quesitos básicos, em geral, são propriedade do asfalto, com condições de isolamento doméstico social, como vacina antes da vacina, com seus cuidados sanitários, garantidos pelo poder econômico e pela infraestrutura pública. Favelas e periferias “se viram” na solidariedade e em parcerias institucionais e suas formas de organização locais. Assim, quando pronunciamos a palavra “cidade”, explicitamos sua inspiração e significado, que é cidadania. Portanto, há relação direta entre direito e acesso.

Daí decorre que a existência das favelas, como parte do projeto urbano, ao pronunciarmos a palavra cidade, ela carece de vir acompanhada de INCOMPLETUDE, no mínimo. Portanto, quando esse imaginário indica “normalidade”, está instituída a lógica da Casa Grande e da Senzala e, em decorrência, a presença da escravidão ainda hoje, como parte do sistema capitalista, como dito antes.

POR QUE FAVELA É CIDADE

O projeto nasce com uma contradição explícita: seu casamento com o cimento armado e a saudade da terra, de recente história, no caso do Brasil e do Rio, na inversão do rural para o urbano, com a tardia chegada da Revolução Industrial por aqui. Coincidindo com a chamada libertação da Escravidão, narrada por diversos autores, a necessidade do trabalho livre, cobrindo o que, sobejamente, se chamava também de indolência “indígena”, tida como preguiçosa para o desenvolvimento do processo social de produção.

Há aí, portanto, um fulcro de natureza cultural ideológica. Na convivência conflitiva de acúmulo e escassez, há que se entender a relação de causa e efeito e, portanto, a “normalidade” do projeto urbano esgarçado, que é reforçada pela necessidade de cuidar do asfalto, reprimindo a favela e a periferia. A expressão SEGURANÇA passa a figurar nas pesquisas de opinião pública como prioridade da cidade. E as demais políticas públicas, de primeira necessidade para o conjunto, fica secundarizada para a favela. Isso gera uma nova categoria: a INCOMPLETUDE, também chamada de ausências, que acabam também “normalizando” a dicotomia do binômio ACESSO/DIREITO.

A singularidade da cidade do Rio é coisa de cinema, desde a gratuidade patrimonial de sua natureza, há também imagem invertida do espelho, usado em Cidade Cerzida, que pro Leblon tem o Vidigal, pra Ipanema tem Cantagalo, pra Rocinha tem São Conrado e Gávea, pro Leme o Chapéu e a Babilônia, o anel que vai do Borel ao Salgueiro para Tijuca, e daí por diante. Assim também, saindo do Galeão, a Linha Vermelha separa um dos grandes polos de parques tecnológicos e de produção do conhecimento, das dezenove favelas da Maré, com sua potência orgânica e intelectual e resistente, convivendo com a ausência do poder público.

Na cidade cerzida e multicêntrica, o espaço urbano está em disputa com a potência dos territórios e da diversidade, que é a identidade da cidade.

Vale lembrar como a cidade vem sendo filmada a partir da favela que é a cidade, inclusive, a de Deus, que Paulo Lins oferece a Fernando Meirelles e que repercute mundo a fora, ao tempo que sugere a carta etnográfica de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, que problematizam o urbanismo crescente.

Abre-se então a possibilidade de perceber a presença da cultura escrava ou escravizadora, em pleno processo urbano, com a “normalidade” da existência da favela, como saída para o projeto urbano desigual, onde, inclusive, vive a maioria da população negra. Santa Marta, Duas Semanas no Morro (Coutinho) e Notícias de uma Guerra Particular (Salles), e ainda, À Margem de uma Imagem (Mocarzel), com a população de rua de São Paulo, reparam e demostram essa evidência escondida pelo imaginário produzido, como ainda demonstra o clássico “Cinco Vezes Favela”.

Diante da evidência, da potência econômica, cultural e criativa da cidade a partir da favela, a pergunta que precisa ser feita refere-se à “normalidade” do tratamento diferenciado no planejamento das políticas públicas para as favelas e periferias, o que facilita a territorialização das fragilidades, que, como dizia Hélio Peregrino, não se deve confundir o sintoma com a causa. Da infraestrutura a todos os equipamentos necessários para o acesso do bem-viver, direito e acesso não podem priorizar o asfalto.

Chegamos então, no furor feuerbachiano, da passagem de não apenas pensar a realidade, mas de transformá-la. Aí, Paulo Freire e Gramsci se encontram, na produção dos novos “intelectuais orgânicos”, via “política de cotas” e os convênios com os pré-vestibulares comunitários, grande parte da favela e da periferia, incluindo a população negra, portanto as pesquisas e os pensares urbanos e os seus dados e cálculos têm o diagnóstico, em grande parte, desde os territórios diversos e plurais da cidade multicêntrica, com as leituras de informação e significação, medidas nas perspectiva infinita das tradições e das possibilidades que movimentam mudanças que quebram hierarquias e fortalecem circularidades no caráter político, religioso e afetivo do cotidiano, com mais acesso e com mais trocas e inclusive interferem nos roteiros e sambas-enredo de carnavais, malandros e heróis, como quase perfeitamente desenvolve o antropólogo Roberto da Matta.

Para essa circulação heterodoxa da cidade, racismo é pandemia, e enquanto a vacina não vem, a pele negra já não se reveste mais de máscaras brancas, como intitula sua obra, Frantz Fanon.

DESCONSIDERANDO, INICIALMENTE

A cidade multicêntrica incorpora e recupera o sentido de cidade-cidadania, que potencializa a diversidade plural e complexa, sem se submeter à dicotomia que falseia a relação acesso e direito.

A lógica urbana centro/periferia ou asfalto/favela que se “escancarou” na pandemia, no entendimento do papel do Estado e no fetiche salarial do poder econômico, já não mais sustenta ou resiste ao papel de significação da cultura e da informação a partir do explicitado na ideia de território e de pertencimento, como profetizou, acadêmica e politicamente, o geógrafo Milton Santos, que também, entre outros, inspira “Betinho” e os arautos da democracia ao embate e combate político da fome, cujo mapa está de volta.

A cidade multicêntrica guarda o coração da cidade também percorrendo os interstícios do cimento armado, que consegue, muitas vezes, embrutecer a relação com a natureza. Os territórios onde habitam os empobrecidos é mais afeito à festa que presenteia o comum, em mutirão ou nas simbologias que mantêm as tradições, regadas pelo tempero dos antepassados e pelos ritmos que convivem com o contemporâneo, saboreando o gosto da montanha e da comida, na cidade assassina, como diz Krenak, e onde só se respira a sordidez e a perversão da negação da vida e sem o namoro com a terra.

Terra é mãe e sente a necessidade de disciplinar os filhos, como deveríamos entender a pandemia. Terra é também a medida do transcendente. Somos humanos divorciados do cosmos e buscamos muletas. Portanto, o caos urbano se associa ao dualismo – ser humano e espiritual.

A cidade multicêntrica é essa ponte!

Matéria publicada originalmente em Xapuri

Adair Rocha integra o coletivo Estados Gerais da Cultura. Nascido em Pouso Alegre, em 1950, vive há bastante tempo no Rio onde firmou forte interação da atividade acadêmica com o processo sociopolítico e cultural. É pós-doutor em comunicação pela UFRJ; professor adjunto de na PUC-Rio e na UERJ, ambas no departamento de Comunicação Social. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.