Terezinha nunca foi Tereza

Tudo que escrevo me reporta a mulher que eu queria conhecer cebolinha. Porque penso que nascermos cebolinhas e criamos camadas que engrossam e craquelam. E que provocam choro, paixão ou ojeriza.

Somos isso. Enormes cebolas. E eu queria ter conhecido Terezinha enquanto era cebolinha. Por certo que a cebolinha estava lá quando a conheci, mas certo também é que nossas camadas externas resguardam o que somos bem no início.

Eu conheci Terezinha já com muitas camadas e choros.
Sei que não foi criança por muito tempo. Que teve muitas madrastas. Sei que sua avó fora escrava. Já Terezinha, era livre na lei, mas presa na vida.

Foi doméstica, sonhava ser freira. Talvez porque fosse um caminho para o estudo. Desconheço uma mulher com mais garra. Tanto assim que adoecia quando não tinha o que fazer.

E foi logo entre as freiras que descobriu a tortura por ser diferente. Chegou pequena, no colégio. Criada sem mãe, que fugiu quando ela era muito pequena, chupava o dedão. Aliás, como quase toda criança, preta ou branca. Mas no imaginário religioso, a tortura, a dor, a privação e mesmo as provações sempre foram pretas. As freiras lhe queimavam os dedos no fogão. Foi assim que perdeu esse direito de criancice. Perdeu muitos daí para trás ou para frente.

Estudou o primeiro ano escolar com as freiras, aprendeu a ler. Pelo que analiso hoje, tinha leve dislexia. Trocava fonemas na fala e escrita e evitava a escrita por ter “letra ruim”. Foi logo para a cozinha, para o esfregão e o tanque. Foi doméstica desde os oito anos. Dormia no emprego e sabia que só sairia de lá para casar. Essa espécie de sentença imputada às meninas pretas desde sempre. E o casamento, como habeas corpus, comutava a pena. E todo o mais era agravante.

Era menina inteligente, e gente inteligente sofre quando é gente preta. Preto precisava nascer sem entender o que lhe espera a vida. Mas, a biologia não faz distinção. Então lá vem nascendo outro negro cuja capacidade mental não lhe detrairá em nada dos demais humanos, mas sabe-se lá o porquê, vai sim.

Aprendemos. E a Terezinha aprendeu com proficiência a lavar os lençois mais brancos, a quarar, a alvejar com anil, a bater a roupa com a força do ódio dos sem perspectiva. Aprendeu a cozinhar o banquete dos ricos, as sobremesas de fora. Aprendeu a limpar os lugares onde ninguém nunca veria. A costurar à mão e com a máquina.

E aprendeu a andar com as costas eretas, a barriga prensada e o quadril encaixado, quase como uma bailarina.

Coisas que as meninas aprendiam a fazer. A estrutura ensinava a mulher a ser dona de casa, a mulher preta a ser doméstica. Cresceu bonita, a menina Terezinha. O que não foi de grande ganho. Porque beleza que ninguém vê é só o que? Nem é.

A vida era cuidar dos outros, como o foi para sua avó, suas tias, suas parentas todas desde a primeira no porão de um navio negreiro.

Lia pouco, ou melhor, com dificuldade, mas sempre lia. Lia muito. E narrava histórias cheias de intenções.
Seria boa escritora se soubesse que podia. Casou aos 21, tendo como herança, pelos muitos anos de trabalho, um baú de madeira com um enxoval finíssimo. Ofertado pela patroa como promessa cumprida. Uma bonificação. Uma alforria premiada.

E, por certo, esse baú virou para os descendentes “O Baú”. Muitos não chegaram a vê-lo, foi roubado por uma parenta, dessas que acham que merecem algo por ser quem é. E com ele se foi parte do enxoval, outra lenda que sempre povoou o pensamento dos que vieram depois.

Creio que Terezinha da Silva nasceu para criar, cuidar, ensinar, benzer e orar.
Quantas dores curou com balbucios inaudíveis, água e ervas surradas ao ar.

Quantas dores de si nunca conseguiu tirar. Mas dizia sobre opressão. Sobre luta de classes. Foi mulher sofrida, casada, traída, engravidada como prisão perpétua e a condição de não impor regras sobre si. Mas foi forte. Resistiu aos frios paulistanos, aos despejos, aos cortiços, à favela. Numa evolução regressiva da condição social. Da cidadania incompleta.

Não fosse pela dislexia seguiria Carolina de Jesus, pois que escrevia, com a voz, o mundo negro, a vida da mulher negra e periférica, a fome e o medo da vida privada. Da vida privada de vida.

Aprendi a ler nesse livro. Li muito as histórias de Terezinha, menina, moça e mulher. Conheci os abusos físicos e psicológicos; aprendi sobre ter que vestir a roupa que impede a dúvida. Sobre como não morrer de fome com o que serve o terreno baldio. Aprendi matemática, conferida com rapidez de calculadora. E aprendi a não mentir, roubar ou prejudicar.

Li Terezinha da Silva, nas garrafas de bebida alcoólica e na disposição em acordar disposta e bem arrumada para pegar o coletivo, sem nunca faltar um dia ao trabalho, mesmo doente.

Aprendi o significado de ser mãe, e mulher menos que mãe. E aprendi que a vida é um eterno retorno.

Terezinha nunca foi Tereza. Nasceu diminutiva no nome. Superlativa na luta e na capacidade pedagógica.
Talvez eu não saiba escrever o suficiente, como Conceição Evaristo e suas narrativas mescladoras do real e do fantástico. Mas inegavelmente essa Terezinha daria um romance repleto de detalhes que eu nem me atrevo a enfeiar por não saber como fazer.

Talvez quando chegar a minha hora de ser história, alguém de mim me escreva e descasque minhas camadas e chore por mim e por aquela cebolinha chamada Terezinha.

Texto é de Cristiane Alves que é uma das convidadas para participar do encontro com a escritora e romancista Conceição Evaristo, pelos Estados Gerais da Cultura: ‘A gente combinamos de não morrer’. Cristiane tem presente em seus escritos o drama das mulheres negras ao longo da história.

Cristiane Alves será apresentada segundo suas próprias palavras. “Cristiane de Assis Macedo Alves. Mulher preta, mãe, irmã, esposa e filha (necessariamente nessa ordem). Geógrafa, professora de Geografia e Gestora ambiental. Especialista em Educação Especial na área de Altas Habilidades/Superdotação.Feminista por convicção, resistência (sem que exista outra opção) e sobrevivente. Porque não há minoria que não lute muitas lutas infinitamente, enquanto dure.Escreve como colunista no GGN desde 2018 algo pelo qual sente imenso orgulho.

Reflexões sobre a “coisa pública”

E, enfim, “a coisa pública” deve ser de todos e é sua por esta razão; seu bairro é a extensão de sua casa, que é parte inseparável dele e parte do tecido urbano.

Foto via internet. Município de Serra Alta- Santa Catarina. Todos os direitos reservados ao fotógrafo.

No Brasil, sua democracia simulada parece definir essa chamada “coisa pública”. Do ponto de vista jurídico ela está amplamente definida, salvo suas interpretações nem sempre esclarecedoras do direito dessa “coisa”. “Coisa” no título e no texto porque culturalmente mal definida.

Sua indefinição é tal que o comportamento – a “coisa pública é do governo, e, como tal, não me diz respeito…” é lugar comum em nossa controvertida cidadania e brasilidade. 

Ocorre que essa “coisa” – traduzindo, é um bem público, precioso por sua utilidade e uso. Mas o tal comportamento citado é agravado ainda mais na compreensão do bem privado e o descompromisso com a “coisa pública”. E é assim pela exacerbação do direito privado na sua contradição entre os mais abastados economicamente e os menos abastados e até os despossuídos. 

Paradoxalmente é corriqueiro acontecer que abastados, no seu alto poder de compra, se apropriam de espaços vitais do território urbano para instalação de suas habitações e espaços de negócios privados. Ocupação esta, muitas vezes, em prejuízo de espaços que a Administração Pública deveria preservar para instalar “espaços públicos de convivência”. Mas o paradoxo não termina aí. E, na outra ponta, entre os menos abastados, a ocupação nos espaços subocupados de menor valor e “vazios urbanos” desconectados do tecido urbano formal (estranhamente chamados de “subnormais”) se dá desordenadamente, novamente em prejuízo de espaços vitais que poderiam se tornar “espaços públicos de convivência”. 

Nas ocupações de alto valor imobiliário, abundantes de serviços públicos, parte privilegiada do tecido urbano, muitas vezes, o desinteresse além-muros de seus proprietários pela “coisa pública” fica patente no seu descompromisso com suas ruas e praças e equipamentos urbanos de seu entorno. Ou seja, pagam impostos (IPTU e outros), então a responsabilidade é da Administração Pública. Alienação e equívoco de seu direito e responsabilidade na “coisa pública” que sendo sua também deveria ser bem cuidada. Nas ocupações de baixo valor imobiliário, carente de serviços públicos, o desinteresse além-portas e ou muros (???) de seus proprietários e o não proprietários (excluídos) pela “coisa pública” é ainda maior. 

Nesses casos, os que pagam impostos (IPTU e outros) não têm retorno equivalente em serviços públicos, e os que não pagam (IPTU e outros) classificados como “ocupações subnormais” não identificam o espaço público de convivência como seu, porque não conseguem estabelecer uma convivência integradora e vertebradora de uma identidade municipal – o sentido de pertencimento a malha urbana formal é baixo e até nulo. Tudo proporcional ao abandono de suas ruas e praças, suas calçadas e pontos de transporte coletivo. É o dilema entre o “asfalto” e o “morro” no seu processo de exclusão e contradição social. 

O abandono e ou a ausência destes espaços públicos de convivência e mobilidade urbana estimulam a alienação de sua consciência pública. E o mais grave, até naqueles espaços públicos privilegiados, se estimulam o sentimento de individualismo, de isolamento e falta de convivência para cordialidade coletiva, agravados pela violência e a crescente “indústria de segurança privada” na vã tentativa de um urbanismo de proteção. Mas, contraditoriamente, é desestruturante do tecido urbano e da cidadania civilizatória e de fraternidade. 

Finalmente, cabe destacar algumas reflexões: 

– sua rua, beco, ou viela são a extensão de sua casa, sua comunidade, sua vila e ou seu condomínio (vertical e ou horizontal, aberto ou fechado), assim como é sua calçada, suas praças, parques e jardins, pontos de transportes coletivos, sua iluminação e arborização e outros espaços e equipamentos urbanos onde pode encontrar seus vizinhos. E, enfim, “a coisa pública” deve ser de todos e é sua por esta razão; 

– seu bairro é a extensão de sua casa, que é parte inseparável dele e parte do tecido urbano – reconhecido, ou não, porque é de direito e é seu na consolidação de sua cidadania; 

– sua cidade é a extensão de sua casa, e é a extensão de seu município na sua integração combalida, mas necessária entre o tecido urbano e o rural; e – assim é sua região e país, seu lugar de morada e identidade cultural. 
Flavio W. Lara Instituto ComAfrica Rio de Janeiro – RJ – Brasil Junho 2006

Flávio W. Lara integra a equipe dos Estados Gerais da Cultura, é ativista político e tem experiência em projetos social e ambiental. Atualmente trabalha como voluntário no complexo da Penha, Rio de Janeiro, presta consultoria e colabora com o Instituto Mirico Cota, no Baixo Tocantins (na áreas de engenharia econômica e tecnologia de recursos e produtos florestais).

 

Cristo foi militante dos Direitos Humanos

ilustração Fúlvio Pacheco

O quadrinista curitibano Fúlvio Pacheco quando criou a ilustração apresentando Jesus negro, black-power, militante dos direitos humanos, estava fortalecido espiritualmente pelas ações de dois líderes religiosos, Padre Julio Lancelotti e Pastor Henrique Vieira. Segundo o artista, enxergar um Cristo mais periférico foi uma ideia amadurecida nos últimos anos e também pelas contradições que vivenciou a partir de sua base religiosa familiar – Igreja Evangélica Batista.

“Desde sempre fui contestador ao que se falava na Igreja, principalmente no período das últimas eleições presidenciais, quando ficou evidente a extrema a polarização e me decepcionei muito com as posições de pessoas que frequentavam a igreja”, confessa o artista. “Mais ou menos nessa época, conheci tanto o pastor como o padre Lancellotti e foi muito bacana, até um incentivo para eu não deixar de ser cristão pela decepção com as pessoas e a religião. Eu li muito sobre os dois e me liguei ao que pregavam e praticavam. Não só nas palavras como nas atitudes deles”.

Fulvio tem um ateliê chamado Fábrica de Arte e nele trabalha junto com a filha. Para destacar o período da Páscoa, ambos, pai e filha decidiram criar uma imagem associada ao momento. “Pensei um pouco e decidi criar a imagem de Jesus que hoje eu reconheço como ele foi, periférico, revolucionário, negro, black-power, refugiado. Então, fiz a imagem baseado muito no que acompanhei e li, principalmente do pastor”. A ilustração foi feita em estêncil, uma técnica de grafite, que permite colocar adjetivos e informações, e em destaque a questão dos direitos humanos, que têm relação com a verdadeira causa defendida por Cristo.

“Quando vi o encontro dos dois e acompanhei o debate comecei a fazer a conexão entre o ilustração e o que eles estavam falando durante o debate. Dois líderes que adoro”. Fulvio pertence a ABRAÇA – uma instituição que atua em prol da pessoa autista. Também participou de um encontro sobre Artistas Autistas nos Estados Gerais da Cultura. Como quadrinista e artista autista desenvolve uma série atividades e dirige a Gibiteca de Curitiba. Além disso, tem uma revista que divulga informações sobre autismo associado a arte.

O encontro Lucidez não ocorre sem conflitos, do qual participaram o Padre Julio Lancellotti e o Pastor Henrique Vieira, para Fulvio Pacheco foi especial, considerando os fatos de sua trajetória de vida. Os dois líderes religiosos são defensores dos direitos humanos nas palavras e na prática, assim como pregava Cristo. Padre Júlio e alma gigante na entrega à causa dos desvalidos e descamisados diariamente. Pastor Vieira, da mesma forma, desenvolve muitos projetos nas favelas do Rio de Janeiro.

Sonhos, de Helena Kolody no Dia Mundial da Poesia

Video instalação do artista argentino Sebastián Diaz Morales. Suspension. 2014

Sonhos

Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.

Janine Malanski faz referência ao Dia Mundial da Poesia e homenageia todos os poetas com Sonhos, de Helena Kolody. no 31o. Encontro dos EGC – Teatro, dança e Literatura: a potência dos territórios.

Destruição do Brasil por Silvio Tendler, no Canal do Conde

A viralização do manifesto Vida Acima de Tudo, com mais de 140 mil assinaturas de pessoas das mais variadas classes sociais, de cidadãos comuns a personalidades de renome, provocou reações em todo Brasil. A entrevista de Silvio Tendler, ao Gustavo Conde em seu canal no Youtube, com mais de 43 mil seguidores, conta um pouco de como foi produzido o manifesto.

Entre as melhores frases de Tendler nesta entrevista imperdível selecionamos algumas:

“Cem mil brasileiros, em 24 horas, reagiram contra este processo predatório de degradação da vida no Brasil.”

“Os mortos não têm pátria e os genocidas jamais serão perdoados”.

“Toda uma coletividade despertou para vida. A gente pode lutar e deve lutar”.

“É surrealista! O Brasil com 260 mil mortos e nada abalou a Bolsa de Valores, o cassino financeiro. Mas o anúncio da inocência de Lula fez o dólar subir. Isso é surrealista. O que é essa figura: o Mercado”.

“Precisamos gerar empregos e voltar-se para reconstrução do estado de bem estar social”.

“A esperança continua. Em plena pandemia não parei de trabalhar um dia. Continuo fazendo filme, sou diabético, cardíaco, cadeirante, tenho um pulmão só e, então, estou sentado numa mesa com computador falando com o mundo”.

“Estou preparando três filmes porque um só cansa. A Bolsa ou Vida ( Se o futuro vai ser humano e a natureza ou o cassino financeiro). Saúde tem Cura ( um filme em defesa do SUS. Um projeto antigo meu que desde 88 o elaboro, que data da fundação do Sistema Único de Saúde) História do Sindicalismo…”

“Como não dá para sair de casa, estamos fazendo um filme a partir de videos-conferências. É o cinema do possível, a estética do confinamento… Com estes três filmes já vamos construir um painel do Brasil contemporâneo”.

“Criei um movimento para reconstruir o Ministério da Cultura: os Estados Gerais da Cultura. Uma luta longa, uma luta de resistência.”

O manifesto saiu com o selo dos Estados Gerais da Cultura. É uma iniciativa de um grupo de companheiros que tem um projeto de um outro país, de um outro futuro. Com arte, ciência e paciência construiremos o mundo”.

Poema do Aviso Final

 (Torquato Neto)

É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.

É preciso que alguma coisa atraia

a vida

ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.

É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.

  • O poema do Aviso Final foi declamado por Delayne Brasil, apoiadora do coletivo, no final do Trigésimo Encontro do EGC: Bibliotecas Comunitárias

MANIFESTO “VIDA ACIMA DE TUDO”: BASTIDOR (JC SEBE BOM MEIHY)

Mestre Sebe revela algumas passagens curiosas na produção de um manifesto em defesa da vida, que viralizou antes de ser concluído

O sábado amanheceu nublado, morno, indeciso como que perguntando se viraria chuva. Virou um pouco, desvirou depois… Eu tinha viagem longa pela frente e a estrada que parecia cansada de tanta passagem protestava verdejando alguma esperança.

Fim de verão, mesmo com pouca chuva. Contei alguns de meus mortos na pandemia e quando a ladainha dos números ameaçava ritmo, optei pela devoção ao celular, amedrontado, claro. Foi iluminar a tela e logo meu parceiro Sílvio Tendler perguntava se queria participar da redação de carta coletiva. Sou avesso a grupos grandes e com pretensão de unanimidade, mas o apreço fez combinar o tempo com o convite. Aceitei.

cineasta Silvio Tendler

Aceitei sim, mas sem convicção alguma, pois conheço bem minhas resistências fiadas em desencontros dessa natureza. Imagine, uma coleção de intelectuais, artistas, religiosos de várias matrizes, todos juntos, tentando uma carta… A sucessão de propostas se multiplicava como tabuada incontrolável. Com meus botões, reforcei a premissa pessimista: não vai dar certo. E mais, o tempo passava, mais lances fermentavam: citar a Bíblia, usar palavras fortes, retomar exemplos históricos, longa ou curta, endereçada a quem, manifesto ou petição… Meu Deus, eu garantia minha expectativa: vai dar em nada. E pessoas e mais pessoas entravam na lista, confesso, me vi tentado a sair, mas não desisti do galope pelo teor dos participantes, gente de diferentes áreas, pessoas sérias.

Como maestro de orquestra até então improvável, Sílvio ia convidando, acatando, enviesando, contornando, como dono de gerúndios arrumados na pauta das possibilidades. Eram professores renomados, economistas de relevo, artistas de muitos ramos, uma floresta estonteante de gente inteligente, bem intencionada e com ânimo despertado. Mesmo assim, não vai dar certo, eu dizia.

E quanto mais sondava desacertos, mais ampliava o leque de sugestões que iam sim se afinando. Dava-se o milagre da boa vontade. Era tudo muito vertiginoso, entusiasmante e de repente me vi convertido em adepto dos mais empolgados. Dei alguns pitacos, concordei com certas ponderações, refutei outras e eis que tínhamos um texto base. E haja participação. Tira, põe, retoma, acrescenta, volta, muda… E o dono dos gerúndios exercitava acordes na velocidade de gravações que dialogavam com tecladas vindas de todos os cantos.

Sebe na pandemia

Diria que houve etapas no crescimento do grupo. Primeiro plantou-se a ideia, depois os pressupostos, em seguida brotou-se o texto mãe, reparos feitos (mil reparos) e restava a logística: onde postar, como angariar mais adeptos… Nem sei dizer como tudo se ajeitou, mas bem se ajeitou de maneira a termos em menos de 24 horas mais de 100 mil acessos em versões em várias línguas. Segue o manifesto, segue também o pedido de divulgação deste texto que é um pouco o lamento de um punhado de pessoas devotas de mudanças.

MANIFESTO “VIDA ACIMA DE TUDO”

CARTA ABERTA À HUMANIDADE

“Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança.” Hannah Arendt

O Brasil grita por socorro.

Brasileiras e brasileiros comprometidos com a vida estão reféns do genocida Jair Bolsonaro, que ocupa a presidência do Brasil junto a uma gangue de fanáticos movidos pela irracionalidade fascista.

Esse homem sem humanidade nega a ciência, a vida, a proteção ao meio ambiente e a compaixão. O ódio ao outro é sua razão no exercício do poder.

O Brasil hoje sofre com o intencional colapso do sistema de saúde. O descaso com a vacinação e com as medidas básicas de prevenção, o estímulo à aglomeração e à quebra do confinamento, aliados à total ausência de uma política sanitária, criam o ambiente ideal para novas mutações do vírus e colocam em risco os países vizinhos e toda a humanidade. Assistimos horrorizados ao extermínio sistemático de nossa população, sobretudo dos pobres, quilombolas e indígenas. 

O monstruoso governo genocida de Bolsonaro deixou de ser apenas uma ameaça para o Brasil para se tornar uma ameaça global.

Apelamos às instâncias nacionais – STF, OAB, Congresso Nacional, CNBB – e às Nações Unidas. Pedimos urgência ao Tribunal Penal Internacional (TPI) na condenação da política genocida desse governo que ameaça a civilização.

Vida acima de tudo.

Publicação original JornalContato

Espaços Públicos de Convivência e Democracia

Instalação de Edgar de Souza – Bronze (2000), Inhotim

Por Flávio Lara

O inchaço dos grandes centros urbanos nos países subdesenvolvidos, no último quartel do Século XX e nesse Século XI, provocados pela intensificação do processo de urbanização e o crescimento desordenado de seu povoamento por maciços movimentos migratórios decorrentes do empobrecimento das áreas rurais, especialmente aquelas da pequena propriedade familiar e camponesa, tem provocado um agravamento da qualidade de vida desses centros urbanos com um crescente déficit habitacional e a consequente degradação dos espaços públicos de convivência e sua privatização.

No Brasil, esse fenômeno é particularmente mais grave nas grandes regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo. Mas está difundido na maioria das suas cidades de porte grande e médio e até nas mais novas como Brasília – DF e sua periferia.

A degradação da qualidade de vida de suas populações no seu empobrecimento pela incapacidade dessas áreas urbanas e sua política para proverem trabalho, moradia, educação, saúde e outras necessidades socioeconômicas básicas na mesma intensidade e volume dos contingentes migratórios, tem provocado uma intensificação da violência e proliferação de atividades criminosas.

Esse quadro político socioeconômico tem gerado comportamentos sociais desagregadores e uma retração da mobilidade dessas populações em detrimento do seu direito por espaços públicos de convivência em favor de espaços privados como, condomínios fechados, “shopping centers” e clubes privados como áreas de lazer. È o fortalecimento do individualismo e da privatização das relações sociais, chegando a aberração da “privatização da violência” através da “indústria” dos equipamentos de segurança e seus equipamentos.

Segundo SEGRE (2005) “… centros urbanos e espaços públicos constituíram duas questões essenciais nas agendas urbanísticas dos anos oitenta e noventa do Século XX. Estes, assumidos como o âmbito da sociabilidade, da expressão política e cultural e como o lugar de condensação da identidade da cidade; ficaram inseridos nas políticas orientadas para a melhoria da qualidade ambiental das cidades com relação às atividades dos habitantes, dos fluxos turísticos, revertendo assim as deformações provocadas pelos investimentos imobiliários.”

“…O lugar público deve ser concebido como um espaço urbano acessível onde se produz o encontro da diversidade. Neste sentido, é um reflexo direto da essência da cidade – segundo Colin Rowe (2004), geradora do domínio público – que provém da presença e coexistência de uma multiplicidade de pessoas, ofícios, comunidades e culturas que se complementam mutuamente. Por isto, a qualidade urbana de uma cidade é avaliada a partir do significado e da riqueza dos lugares públicos que a compõem*.” “…os espaços públicos como os locais da sociabilidade democrática, do convívio e do intercâmbio social. Nos anos 90, inúmeros projetos urbanos foram propostos no Brasil e na América Latina para recuperar e criar espaços públicos, …não apenas no resgate das praças e parques existentes, mas também na transformação dos vazios dos espaços intersticiais e residuais em áreas multifuncionais apropriadas ao uso coletivo da população.” Fonte: Roberto Segre

Mas o seu abandono e déficit ainda são muito maiores que a sua oferta social.

O advento de espaços “públicos” privatizados nas galerias e praças internas de grandes ‘shoppings centers’ representa um padrão de vida atrelado a um padrão de consumo que não minimiza os conflitos do confinamento das comunidades carentes e excluídas dos usos de espaços públicos de convivência. Cria uma química comportamental de ansiedade pela frustração da incapacidade de consumir aqueles bens de referência de suposto status social ditado pelos modismos do consumismo de massa, agravados pela insegurança e tendência à adoção dos espaços privados, “mais seguros”, contra a violência urbana. E não cria harmonização de convivência e integração dessas comunidades.

A revitalização de espaços e equipamentos urbanos deve buscar esses objetivos contidos no regaste de sua memória cultural, na satisfação de pertencimento aos espaços recuperados e ou criados e adoção pelas comunidades na elevação de sua consciência sobre a esta utilidade pública e sustentabilidade para a melhoria da sua qualidade de vida. E, principalmente, estimular através daquelas atividades que valorizem a ação coletiva, tais como “futebol de quadra”, “handebol”, “Vôlei”, “rodas de leitura” (para discussão de temas estimuladores da consciência e direitos da inclusão social), “contadores de estórias”, grupos musicais e teatrais, danças, grafitagem, cinematografia e fotografia entre outras.

Em face destas considerações e levado em conta o papel do êxodo e migração rural como uma das determinantes do processo brasileiro de urbanização nos últimos 30 anos, , pode-se afirmar que a revitalização desses espaços públicos de convivência e a criação de novos espaços devem valorizar ações tais como:

  • Identificar comunidades urbanas carentes de espaços públicos de convivência e as parcerias no setor privado e no setor público interessadas no seu desenvolvimento.
  • E, a partir destas, projetar revitalização e ou construção destes espaços incorporados às suas demandas sociais, culturais e econômicas. Demandas sociais porque vão fortalecer sua integração e organização sociopolítica e o nível de sua cidadania. Culturais porque poderão resgatar suas tradições abandonadas e ou em risco de extinção e ou desenvolver novas tradições, tudo para a consolidação de sua identidade municipal dentro da multi-culturalidade das populações urbanas. E econômicas porque, além da mistura de funções nas áreas centrais, poderão gerar novas qualificações profissionais e respectivas geração de renda para aquelas parcelas da comunidade alvo diretamente ligada a implementação dos projetos e sua sustentação posterior.
  • Articular essas demandas para possibilitar o surgimento de funções sócio profissionais novas, tais como expressões nas artes plásticas, no teatro, eventos culturais, música, dança, esportes, artesanato, jardinagem, produção de mudas entre outras. E estimular a capacitação de pessoas da comunidade e servidores públicos e, especialmente, jovens adolescentes para essas oportunidades profissionais.
  • Identificar parcerias privadas (empresas, proprietários de prédios – unidades e ou condomínios e outras) e estimular a adoção e ou “apadrinhamento” de logradouros públicos (praças, jardins, ruas arborizadas), equipamentos urbanos identificados para sua recuperação e revitalização, assim como de vazios urbanos e espaços subocupados, ou de ocupação inadequada para serem recuperados e construídos para o uso como espaços públicos de convivência.
  • Priorizar, desenvolver e executar projetos pontuais e específicos que valorizem o foco mais adequado, atrativo e convincente, tais como meio ambiente, educação, saúde, cultura e outros para satisfação da melhoria da qualidade de vida da comunidade alvo.

A sua identificação e construção devem buscar, de forma permanente e progressiva, a adesão das suas comunidades alvo respectivas. Neste sentido, a atração das parcerias possíveis deve ser transparente e objetiva na projeção e construção de seus resultados sob o princípio da conciliação e valorização de seus interesses comuns.

O seu desenvolvimento, assim como os seus respectivos pré-projetos devem trabalhar uma check list das características, tipologias, conteúdos e origem das demandas e carências urbanas por espaços públicos de convivência. Estabelecida esta listagem, deve-se passar à sua análise multicritério, isto é, a ponderação de sua complexidade política, social, econômica, cultural, ambiental e outras que possam definir sua prioridade e o meio e processo de sua execução para produzir o seu melhor resultado.

Nesta check list, por exemplo, identificar melhorias que favoreçam a atratividade e a utilidade dos espaços públicos de convivência tais como:

  • lugares de muita insolação e calor que poderiam receber árvores para sombreamento, melhoria do seu microclima e embelezamento paisagístico com espécies típicas da região, sejam praças, ruas, avenidas e outros;
  • jardins ornamentais que estimulassem a formação de jovens e adolescentes para o seu trato e sustentação – técnicas de jardinagem;
  • equipamentos de lazer diversificados e adequados ao perfil do público usuário potencial tais como bancos, brinquedos, mesas, quiosques, coretos, e outros espaços cobertos ou não para diferentes utilidades culturais e esportivas – todos projetados com a possibilidade de seu aproveitamento para o desenvolvimento de atividades que estimulassem a integração da comunidade usuária e sua qualificação para atuar como multiplicadores nesses campos;
  • estimular a criação de hortos florestais e produção de mudas para a valorização dos espaços urbanos;
  • identificar empresas localizadas na área de influência imediata desses espaços e estimular o seu interesse por sua revitalização ou criação assim como sua sustentação por períodos de apadrinhamento;
  • estimular a Administração Pública para o seu efetivo comprometimento com estas ações, destacando as suas múltiplas vantagens e a importância da preservação de seu patrimônio histórico e o resgate de tradições culturais.

Texto publicado originalmente em Ecodebate

Por que a favela é cidade

Foto via site Xapuri

Adair Rocha, neste artigo, analisa a ampliação territorial nas cidades e seu significado. Apresenta-nos o pensamento dicotômico entre favela e cidade dentro dos padrões clássicos: o caos urbano se associa ao dualismo e à cidadania e, também, fala da necessária e íntima relação direta entre direito e acesso

“Na cidade multicêntrica: Favela é cidade Racismo é pandemia Cultura é significação Comunicação é comunitária”

A natureza ou o caráter multicêntrico da cidade tende a ampliar suas significações, de potencialidades e de fragilidades para os limites e possibilidades de seus territórios.

De saída, questiona o pressuposto pautante das mídias comerciais que reproduzem a dicotomia classista, classificatória ou moralista, onde o asfalto e a periferia dividem o projeto urbano em enriquecidos e empobrecidos, com a consequente leitura moralista da circulação limite do bem e do mal.

Nesse sentido, a produção do imaginário plasma a presença da cultura escravocrata como “natural” da produção do projeto urbano, num olhar genérico que reproduz a lógica da Casa Grande (asfalto) e da Senzala (favela), com suas variações em cada território. Torna-se mais comum na disposição do asfalto onde, em geral, se situam as instituições, das constituições familiares, institucionais, acadêmicas, comerciais, da qualidade da mobilidade etc.

O sistema hierárquico piramidal pauta as relações do quarto de empregada, situado depois da área de serviço, reduzido a uma cela prisional, ao lugar reservado aos ascensoristas, portarias, caixas, condutores etc. O que leva a entender o barulho das “cotas” raciais, quer nos pré-vestibulares comunitários ou em toda política pública de acesso e suas dificuldades de implantação, ao tempo que a cidade multicêntrica se move na produção de “intelectuais orgânicos” que repensam a cidade, a partir da potência e da fragilidade do seu todo.

Esse texto e contexto da cidade, em tempo pandêmico, escancarou-se. A política pública de saúde e dos quesitos básicos, em geral, são propriedade do asfalto, com condições de isolamento doméstico social, como vacina antes da vacina, com seus cuidados sanitários, garantidos pelo poder econômico e pela infraestrutura pública. Favelas e periferias “se viram” na solidariedade e em parcerias institucionais e suas formas de organização locais. Assim, quando pronunciamos a palavra “cidade”, explicitamos sua inspiração e significado, que é cidadania. Portanto, há relação direta entre direito e acesso.

Daí decorre que a existência das favelas, como parte do projeto urbano, ao pronunciarmos a palavra cidade, ela carece de vir acompanhada de INCOMPLETUDE, no mínimo. Portanto, quando esse imaginário indica “normalidade”, está instituída a lógica da Casa Grande e da Senzala e, em decorrência, a presença da escravidão ainda hoje, como parte do sistema capitalista, como dito antes.

POR QUE FAVELA É CIDADE

O projeto nasce com uma contradição explícita: seu casamento com o cimento armado e a saudade da terra, de recente história, no caso do Brasil e do Rio, na inversão do rural para o urbano, com a tardia chegada da Revolução Industrial por aqui. Coincidindo com a chamada libertação da Escravidão, narrada por diversos autores, a necessidade do trabalho livre, cobrindo o que, sobejamente, se chamava também de indolência “indígena”, tida como preguiçosa para o desenvolvimento do processo social de produção.

Há aí, portanto, um fulcro de natureza cultural ideológica. Na convivência conflitiva de acúmulo e escassez, há que se entender a relação de causa e efeito e, portanto, a “normalidade” do projeto urbano esgarçado, que é reforçada pela necessidade de cuidar do asfalto, reprimindo a favela e a periferia. A expressão SEGURANÇA passa a figurar nas pesquisas de opinião pública como prioridade da cidade. E as demais políticas públicas, de primeira necessidade para o conjunto, fica secundarizada para a favela. Isso gera uma nova categoria: a INCOMPLETUDE, também chamada de ausências, que acabam também “normalizando” a dicotomia do binômio ACESSO/DIREITO.

A singularidade da cidade do Rio é coisa de cinema, desde a gratuidade patrimonial de sua natureza, há também imagem invertida do espelho, usado em Cidade Cerzida, que pro Leblon tem o Vidigal, pra Ipanema tem Cantagalo, pra Rocinha tem São Conrado e Gávea, pro Leme o Chapéu e a Babilônia, o anel que vai do Borel ao Salgueiro para Tijuca, e daí por diante. Assim também, saindo do Galeão, a Linha Vermelha separa um dos grandes polos de parques tecnológicos e de produção do conhecimento, das dezenove favelas da Maré, com sua potência orgânica e intelectual e resistente, convivendo com a ausência do poder público.

Na cidade cerzida e multicêntrica, o espaço urbano está em disputa com a potência dos territórios e da diversidade, que é a identidade da cidade.

Vale lembrar como a cidade vem sendo filmada a partir da favela que é a cidade, inclusive, a de Deus, que Paulo Lins oferece a Fernando Meirelles e que repercute mundo a fora, ao tempo que sugere a carta etnográfica de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, que problematizam o urbanismo crescente.

Abre-se então a possibilidade de perceber a presença da cultura escrava ou escravizadora, em pleno processo urbano, com a “normalidade” da existência da favela, como saída para o projeto urbano desigual, onde, inclusive, vive a maioria da população negra. Santa Marta, Duas Semanas no Morro (Coutinho) e Notícias de uma Guerra Particular (Salles), e ainda, À Margem de uma Imagem (Mocarzel), com a população de rua de São Paulo, reparam e demostram essa evidência escondida pelo imaginário produzido, como ainda demonstra o clássico “Cinco Vezes Favela”.

Diante da evidência, da potência econômica, cultural e criativa da cidade a partir da favela, a pergunta que precisa ser feita refere-se à “normalidade” do tratamento diferenciado no planejamento das políticas públicas para as favelas e periferias, o que facilita a territorialização das fragilidades, que, como dizia Hélio Peregrino, não se deve confundir o sintoma com a causa. Da infraestrutura a todos os equipamentos necessários para o acesso do bem-viver, direito e acesso não podem priorizar o asfalto.

Chegamos então, no furor feuerbachiano, da passagem de não apenas pensar a realidade, mas de transformá-la. Aí, Paulo Freire e Gramsci se encontram, na produção dos novos “intelectuais orgânicos”, via “política de cotas” e os convênios com os pré-vestibulares comunitários, grande parte da favela e da periferia, incluindo a população negra, portanto as pesquisas e os pensares urbanos e os seus dados e cálculos têm o diagnóstico, em grande parte, desde os territórios diversos e plurais da cidade multicêntrica, com as leituras de informação e significação, medidas nas perspectiva infinita das tradições e das possibilidades que movimentam mudanças que quebram hierarquias e fortalecem circularidades no caráter político, religioso e afetivo do cotidiano, com mais acesso e com mais trocas e inclusive interferem nos roteiros e sambas-enredo de carnavais, malandros e heróis, como quase perfeitamente desenvolve o antropólogo Roberto da Matta.

Para essa circulação heterodoxa da cidade, racismo é pandemia, e enquanto a vacina não vem, a pele negra já não se reveste mais de máscaras brancas, como intitula sua obra, Frantz Fanon.

DESCONSIDERANDO, INICIALMENTE

A cidade multicêntrica incorpora e recupera o sentido de cidade-cidadania, que potencializa a diversidade plural e complexa, sem se submeter à dicotomia que falseia a relação acesso e direito.

A lógica urbana centro/periferia ou asfalto/favela que se “escancarou” na pandemia, no entendimento do papel do Estado e no fetiche salarial do poder econômico, já não mais sustenta ou resiste ao papel de significação da cultura e da informação a partir do explicitado na ideia de território e de pertencimento, como profetizou, acadêmica e politicamente, o geógrafo Milton Santos, que também, entre outros, inspira “Betinho” e os arautos da democracia ao embate e combate político da fome, cujo mapa está de volta.

A cidade multicêntrica guarda o coração da cidade também percorrendo os interstícios do cimento armado, que consegue, muitas vezes, embrutecer a relação com a natureza. Os territórios onde habitam os empobrecidos é mais afeito à festa que presenteia o comum, em mutirão ou nas simbologias que mantêm as tradições, regadas pelo tempero dos antepassados e pelos ritmos que convivem com o contemporâneo, saboreando o gosto da montanha e da comida, na cidade assassina, como diz Krenak, e onde só se respira a sordidez e a perversão da negação da vida e sem o namoro com a terra.

Terra é mãe e sente a necessidade de disciplinar os filhos, como deveríamos entender a pandemia. Terra é também a medida do transcendente. Somos humanos divorciados do cosmos e buscamos muletas. Portanto, o caos urbano se associa ao dualismo – ser humano e espiritual.

A cidade multicêntrica é essa ponte!

Matéria publicada originalmente em Xapuri

Adair Rocha integra o coletivo Estados Gerais da Cultura. Nascido em Pouso Alegre, em 1950, vive há bastante tempo no Rio onde firmou forte interação da atividade acadêmica com o processo sociopolítico e cultural. É pós-doutor em comunicação pela UFRJ; professor adjunto de na PUC-Rio e na UERJ, ambas no departamento de Comunicação Social. É fundador do Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio; autor de vários artigos publicados em revistas e em jornais periódicos e capítulos de livros nas áreas de comunicação, cultura e movimentos sociais. Gestor público de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Cultura do governo Lula.

Os símbolos nacionais e a desconstrução da nação

Seguimos à deriva numa nave sem comandante e sem carta de navegação

Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3r1l7mE)

Graciliano Ramos escreveu que o esporte nacional não deveria ser o futebol mas a rasteira, esporte pelo qual passar a perna no próximo é virtude.

Furar a fila para a vacina ou engavetar 60 pedidos de impeachment não fazem diferença. Trata-se da construção do Estado de bem estar individual.

A política deixou de ser um programa de ação ideológico para converter-se num trampolim de sucesso pessoal.

A transferência de renda dos pobres para os ricos, cuja diversão é acumular fortunas, é encarada com naturalidade.

A solidariedade é praticada com a parcimônia necessária para não aparentarmos indiferença diante da miséria alheia.

Quando ligo a televisão e vejo os comentaristas políticos e especialistas discutindo a estratégia de vacinação contra o coronavirus me sinto o mico leão dourado ou a ararinha azul da vez, espécies em extinção.

Nunca a humanidade esteve tão ameaçada, enquanto o gado segue passando. Nesse momento, milhões de pessoas passam necessidades; dormem pelas ruas, catam comida no lixo enquanto um “investidor” termina de ganhar seu primeiro milhão do dia, no cassino financeiro.

Nos anos 50 o projeto desenvolvimentista de JK modernizou o país. Em 1960, Juscelino entregou um país moderno e democratizado.

Em 1961, João Goulart, o vice-presidente de Jânio Quadros foi à China em missão oficial. Foi o primeiro dirigente político ocupando o executivo de um país ocidental a visitar a China, em plena Guerra Fria.

Lá conheceu Mao Ze Dong e o projeto chinês de desenvolvimento. No Museu da Revolução aprende que “a Golpes de foice e machado construiriam um mundo novo”. Ali, nos anos 60, viu o futuro nascendo.

A história brasileira parece código morse quando a democracia brasileira é entrecortada por óbices, intervenções e golpes militares: 54, 55, 56, 59, 61, 64, 65, 68, 77, etc, etc, etc.

Prisões, cassações, exílios, empastelamento de jornais, atentados, tortura, assassinatos, desaparecimento de opositores, fechamentos do congresso, do Supremo, intimidações, deposições de presidentes da República, assassinato de operários, invasão de favelas, interferência no processo eleitoral – antes que me perguntem cito a ameaça do General Villas Bôas ao STF, etc, etc, etc.

Enquanto a nação purga uma política econômica desastrosa, o desmantelamento do parque industrial, o desemprego, a inflação, a destruição da educação, da arte, da cultura e da ciência, os militares recebem uma fortuna para promover uma festa de arromba, com direito a pizza, pudim de leite condensado e “chiclé”.

Na França, durante os anos 70, o exército francês tentou desapropriar pequenas propriedades rurais na região do Larzac, para expandir um campo de treinamento militar. Um amigo documentarista, Philippe Haudiquet, resolveu fazer um documentário. Perguntei a razão do filme e ele me explicou, “por uma questão de civilidade”.

Poupem os símbolos nacionais desse mais recente vexame e adotem a bandeira furta-cor como símbolo dessa desgovernança. Seguimos à deriva numa nave sem comandante e sem carta de navegação.

Silvio Tendler

Publicação original: CartaMaior