Boaventura: ser utópico é a única maneira de ser realista no século XXI

Diversas maneiras de entender a distância social

Boaventura de Sousa Santos é um sociólogo português, poeta e escritor que tem se dedicado nos últimos anos a analisar as consequências da pandemia no comportamento da humanidade.

“A ideia que há uma humanidade é uma grande armadilha. A humanidade é um projeto maravilhoso, mas  é uma utopia porque a humanidade que nós temos nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais não existem sem sua própria humanidade“(clique aqui)

Num encontro realizado em outubro de 2020, Boaventura ofereceu ao público uma verdadeira aula sobre o que representa da “distância social à física e à cultural’, assim como os equívocos cometidos pela mídia e redes sociais ao cunhar a expressão ‘distância social’ no lugar do ‘isolamento físico’. Um encontro que não perde jamais a atualidade enquanto o mundo continuar o mesmo.

Um pouco de seus pensamentos e palavras tentamos reproduzir aqui:

“Escolhi como tema a ideia da “distância física, à social e à distância cultural”. Distância é uma palavra que hoje explodiu na comunicação social, nas redes e em todos jornais. Distância metaforicamente pode ser usada para outros objetivos, como distância temporal, espacial. Assim que se desenvolvem certos conceitos e depois se usam metaforicamente para muitas formas. Por exemplo, a distância temporal ou a espacial ou a social.

A corrente do rio foi o termo que metaforicamente deu origem a corrente elétrica. na psicologia a corrente da consciência. Portanto, a distância física é aquela que a própria pandemia nos exige neste momento. Esta distância nada tem haver com a distância social. A grande proximidade cultural e social pode conviver com uma distância física. Por alguma razão, a distância física, como expressão, não colou e se fala em todo lado da distância social, uma palavra horrível se nós daqui pra diante temos em mente que a pandemia vai estar conosco.

No livro  “Futuro começa Agora, da pandemia a utopia” procuro dar conta e falar sobre a sociedade que vamos entrar. Entrada do século XXI. Os séculos começam sempre com um acontecimento e nunca no primeiro ano. Algo, que dá marca que se inscreve no século e que depois, de alguma maneira, muda as formas de sociabilidade, políticas e econômicas desse tempo. Por exemplo, considera-se o século XIX, quando começou com a Revolução Industrial. Como se diz, que o século XX, começou com a primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Dois acontecimentos que se inscreveram na matriz desse século passado.

A pandemia se inscreveu neste século porque há uma correlação com as mudanças climáticas, desmatamento na Amazônia, catástrofe ecológicas, mineração a céu aberto, tudo que sabemos que é o modelo capitalista dominante.

Esse modelo que está a destabilizar os habitats dos animais selvagens porque houve sempre vírus. Grandes mudanças na natureza destabilizam os ciclos da transmissão e o vírus que circulava apenas entre os animais selvagens chega ao homem que não tem imunidade.  A incidência das pandemias vai ser cada vez maior em função das eminentes catástrofes ecológicas em que nós nos encontramos. Vamos entrar num período de pandemia intermitente. Pode ser menos invasivo. Há muita coisa que não sabemos. Uma plataforma de incertezas que estamos a entrar, que é a marca do século XXI, que terão consequências econômicas, sociais e culturais.

Portanto devemos rever nossos conceitos. A distância social é aquela que é criada entre seres humanos num conjunto de relações sociais que decorre pela desigualdade de poder. Esta distância para ser legitimada deve ser transformada num sentido de vida, num senso comum e então transforma-se em distancia cultural. Estão relacionadas mas podem estar diferentes.  Eu posso estar distante da pessoa que amo fisicamente, mas não estar socialmente diferente dela. Pelo contrário, intensificar meu amor nesta distância. Como estar próximo fisicamente e socialmente distante.

Um exemplo: a primeira empregada doméstica que morreu de covid 19 foi porque trabalhava numa casa dos patrões que vieram da Itália infectados. Ela morreu porque já tinha outras condições de vulnerabilidade. A senhora estava próxima e vivia com eles, mas socialmente distante. Isso fez com que houvesse negligência porque era um corpo não tão importante mesmo que estivesse muito próximo. É a distância que determina que este corpo é distante socialmente mesmo muito próximo.

Durante a pandemia houve um isolamento forçado com pessoas que não ficavam confinadas, como é o caso dos casais e dos pais e seus filhos. Viver em casa com intensidade que não viviam antes. Obviamente foi algo que se deu como uma maior aproximação, Estudos mostram que os pais dedicam em média 20 minutos por dia no máximo aos seus  filhos, este tempo aumentou.

Grande parte da população não pode seguir as regras porque a vida não permitiu que isso ocorresse. Mas permitiu uma proximidade e uma outra cultura de intimidade. Exemplos: proliferaram os cursos de cozinha e outros tantos. O caso das mulheres que foram mais vítimas de violência aumentou e o próprio feminicidio. Leva crer que a proximidade aumentou e tiveram que denunciar a violência.

A distância social e física são duas coisas muito distintas. Bom de onde vem de nível macro na nossa sociedade e vem de muitas causas. Vou limitar em três grandes formas de dominação do poder desigual que existe na sociedade contemporânea deste o século XVII.

Capitalismo, colonialismo e patriarcado. 

Estas três formas existem hoje de maneira modificada e não como existiam no século XVII. Parto da ideia que as intendências não foram o fim do colonialismo, mas do fim do colonialismo histórico. O colonialismo se manteve de outras formas, como o racismo, a concentração de terras, as formas extrativistas em que o Brasil é hoje o protagonista mundial, para não falar do Estado que continuou colonial porque essas intendências na América Latina não foram conquistadas ou concedidas às populações nativas desses territórios e sim cedidos por eles esses territórios ao colonizador. Significa que vivemos em sociedades colonialistas e patriarcais.

A violência contra as mulheres está inscrita na sociedade contemporânea exatamente porque o capitalismo não funciona sem corpos racializados e sexolizados. Por que? Porque é uma maneira de realizar o trabalho. O capitalismo não funciona pagando, ainda que sempre explorando o trabalhador, um contrato com carteira assinada. Tem que ter sempre formas de exploração. Um trabalho mal pago é o racializado, de populações negras….

O não pago, o das mulheres, da alimentação, do cuidado, produz vida ao mais profundo nível.  Não é pago. Se esse trabalho fosse pago, o capitalismo não funcionaria. As formas de dominação são diferentes e criam importantes culturas: da exclusão.

O capitalismo é própria da cultura da exclusão e distância vai da exploração. O capitalismo exige que o trabalhador seja igual ao patrão em termos de cidadania. O colonialismo degrada as populações. Há uma degradação antológica, que mulheres e populações indígenas não foram nunca e durante muito tempo, em muitos países, em muitos contextos, consideradas plenamente humanas. Portanto, os corpos racializados são sub-humanos.

A ideia que há uma humanidade é uma grande armadilha. A humanidade é um projeto maravilhoso, mas  é uma utopia porque a humanidade que nós temos nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais não existe sem sua humanidade. Para ilustrar de uma forma que é muito evidente, na mesma semana em que o Brasil ultrapassou 100 mil mortes do covid 19 nada aconteceu. Não houve convulsão política, redes sociais não falavam dessa realidade. Uma certa banalização da vida de populações que são pobres, pretas e pardas. Tal é qual como os EUA. A possibilidade nos EUA de um preto morrer de covid é 3 a 4 vezes maior que um branco. Em São Paulo no Morumbi é menor do que no Campo Limpo bairro de favela, é muito maior. Temos assimetria porque o vírus não é democrático. Temos essas desigualdades. Neste momento existe um fato de uma menina de 10 anos, vítima de estupro, é uma histeria contra a retirada do feto. O que é isso? De um lado um 100 mil vidas, de outro lado um alarido. Há vidas e vidas. As 100 mil mortes são típicas das mortes e vidas severinas, vidas descartáveis. Ao passo que vida do embrião é uma vida manipulada por uma religião colonialista, cristã que deu um valor extraordinário a esse embrião transformado em fundamentalismo. Nem sequer da vida da criança interessava, era uma criança certamente parda,  Era uma vida que trazia com ela sem sua vontade. Portanto dois pesos e duas medidas. São duas imagens de uma mesma sociedade e tão perturbadora.

Os seres racializados e sexolizados são sub-humanos. É sabido que no Mediterrâneo morreram 20 mil pessoas que eram imigrantes e nunca houve nenhuma crise. Imaginem se fossem americanos ou europeus. Que morrem um ou dois americanos no Iraque enquanto outros aos milhares.

Vida que vale, vida que é descartável.

Estes formas de desigualdade de poder estão na origem da distância social em que nós nos encontramos. De alguma maneira a distância social agravou-se com a pandemia. Por que ? O vírus agravou as desigualdades sociais. Quem é que morre mais, os presos, as mulheres, os refugiados, as populações negras e pardas. Vamos classificar e dividir e estamos a falar da maioria da população mundial. Água para lavar às mãos quando não há água para beber ou para cozinhar. Confinamento com pouco distância física quando vivem 12 pessoas num barraco. Confinamento a quem pode fazer tele-trabalho. Aqueles que têm que ir para rua porque precisam ganhar para comer no dia seguinte.

A distância cultural legitima a distância social e o que dá sentido a vida. Uma cultura dominante é uma forma de legitimar a sociabilidade de uma sociedade. A cultura dominante pode designar o que é cultura e o que não é. Pode criar a distância cultural de uma maneira muito simples negar a existência de outra cultura. A negação total. Pode reconhecer a existência de outras culturas, de que somos completamente indiferente, obviamente, considerada inferior. Nossas diferenças na cultura dominante trazem hierarquias: homem e mulher, sociedade e natureza,. … A distinção entre arte e artesanato é uma forma de não considerar arte e não entrar no cânone cultural.

Os algoritimos, as mensagens personalizadas em massa e extremamente personalizadas que cada um de nós tem direito a sua própria publicidade e tudo fica de fora ao que não interessa ao consumo. O trabalho das mulheres, a economia informal, camponesa, indígena.

Cultura estatística é uma forma de criar a invisibilidade. A cultura sempre é uma característica da filha pobre ou enjeitada das políticas sociais.

Os projetos e ausência de garantia e a ideia de os criativos querem autonomia ‘numa sociedade capitalista não existe sem condições da autonomia. Muitas formas culturais, não só na produção, exige e é necessária presença. A pandemia impede muito dessa presença. Crise profunda de todos os produtores culturais. A cultura não é necessária, é um bem de luxo. O não presencial obrigou a uma adaptação muito grande. Esta situação online será muito difícil de se manter permanente.

Internet cria problema na cultura porque nós alimentamos o poder capitalista único.

Zoom é um exemplo, Amazon, o primeiro trilionário do mundo. Internet criou a divisão cultural que é uma drama extraordinário nos países. Cerca de 60 por cento das crianças vão sofrer da falta de presença nas escolas. Internet não existe em camadas mais pobres. Escola é a única refeição quente que a criança tinha, mas mantiveram abertas as cantinas. Nós estamos num momento em que as distâncias culturais avançaram. Nas últimas décadas foi possível passar do multiculturalismo indiferente, que tolera aceita imigrantes turcos, argelinos, mas nem pensar que essas culturas podem enriquecer a cultura europeia.

A Europa foi o continente mais violento do mundo. Não tem nenhuma lição dar no sentido da vida. 78 milhões de mortes.

O fundamentalismo religioso é algo que existiu desde o século 17. Agravou-se com a pandemia. Fundamentalismo religioso é forma de dominação cultural. Uma das grandes oportunidades que nos dá, é utopia que vem reabilitar a ideia de alternativa. Nós vivemos nos últimos 40 anos numa grande pandemia, a do neoliberalismo. A pandemia está a dar uma lição. Não é um inimigo, é um pedagogo porque ensina matando, que precisa mudar o modelo de desenvolvimento.

Não podemos ter vergonha de ser utópico. A única maneira de ser realista no século XXI é ser utópico.

Como furar a bolha e sair do quadrado?

Os Estados Gerais da Cultura retomam a sua pauta inicial com “Arte, Ciência e Paciência mudaremos o mundo” e juntos propõem a todos “sair da nossa bolha, da nossa caixinha”, como diz o cineasta Silvio Tendler, que motivou a criação do coletivo e ir em busca de um futuro melhor, principalmente num mundo que inventa e faz guerras. Nada melhor que estimular um debate sobre que futuro esperamos ou queremos construir para nós, junto com o professor, João Cézar de Castro Rocha, autor do livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio, e com a filósofa e psicanalista Márcia Tiburi. Eles irão trazer suas experiências e ideias e você também poderá participar e contribuir com nossa proposta neste domingo (20), às 17h!

Um chamamento necessário e fundamental na visão do cineasta Silvio Tendler e que faz sentido para artistas, intelectuais e toda as gentes que integram o coletivo porque é o retorno ao rumo original dos Estados Gerais da Cultura. “Agora que o mundo está convulsionado em guerra e considerando que o EGC nasceram propondo a ESCOLA SUPERIOR DE PAZ ao invés da Escola Superior de Guerra, FORÇAS AMADAS no lugar das Forças Armadas, está na hora de pensar no futuro”, conclama Tendler. “Por algum tempo ficamos presos às pautas semelhantes a tantos movimentos e organizações que existem e que em quase todas e todos essas pautas são motivo de militância. Vamos tentar sair do nosso quadrado e alcançar o futuro”.

João Cézar de Castro Rocha é professor titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Doutor em Letras pela UERJ (1997) e em Literatura Comparada pela Stanford University (2002), pesquisador 1D do CNPq e foi Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC, 2016-2017). Seu trabalho foi traduzido para o inglês, mandarim, espanhol francês, italiano e alemão. Autor de 13 livros, entre os quais Guerra Cultural e retórica do ódio. Crônicas de um Brasil póspolítico (Editora Caminhos, 2020).

Márcia Tiburi é uma filósofa, artista plástica, professora universitária, escritora e política brasileira. É autora de obras importantes do pensamento crítico contemporâneo, tais como Complexo de vira-lata (Civilização Brasileira, 2021), Feminismo em comum: para todas, todes e todos (Rosa dos Tempos, 2018), Ridículo político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto (Record, 2017) e Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record, 2015). Atualmente leciona na Universidade Paris 8 e se dedica à literatura e às artes visuais.

Barbatuques é reconhecido mundialmente pela música e percussão corporal. O grupo estará no encontro com Marcia e João Cézar para mostrar que a arte transforma e torna o mundo mais bonito. A música do grupo é produzida apenas com o corpo: palmas, estalos, vozes, pés e diversas outras técnicas que criaram, resultando em uma sonoridade singular e impactante.

No palco, o Barbatuques traz um show com repertório especial, que circula por todos os trabalhos já lançados pelo grupo. Clássicos dos primeiros discos como Baianá (hit que ganhou o mundo), Barbapapa´s groove, Carcará e Baião Destemperado, juntam-se ao repertório mais recente que traz músicas como Ayú, Skamenco, Kererê e Você Chegou (Rio 2). Um apanhado rítmico que representa a sonoridade do grupo desde a sua criação. O grupo se apresenta pelo mundo, fazendo shows para todos os públicos, oficinas e atividades pedagógicas para perfis variados e projetos para crianças.

Desengaveta Rodrigo

Quando no futuro perguntarem aos nossos descendentes como conseguimos conviver com os genocidas que nos governam, dificilmente eles terão alguma explicação convincente. Pigarrearão e tentarão mudar de assunto.


Como explicar no futuro a reforma da previdência, a reforma trabalhista, o engavetamento de tantos pedidos de impeachments, como se o Estado brasileiro formasse um arquipélago de ilhas governadas por decisões monocráticas.


Quem conseguirá explicar que no coração da Amazônia, pulmão do mundo, as pessoas morrem asfixiadas por falta de oxigênio? Não se trata de uma metáfora desses filmes de ficção científica, através dos quais as pessoas são docilizadas por medo do futuro. Está acontecendo hoje, aqui, agora. Logo ali na Amazônia.


O país está se esfarinhando… e seguimos imobilizados. Precisamos de organização popular para enfrentarmos os genocidas. 

Precisamos de um projeto de reconstrução nacional para antagonizar o neoliberalismo criminoso.
Pela reconstituição do Estado de Bem estar Social, em Defesa do Sistema Ũnico de Saúde (SUS), da Pesquisa científica, artística, cultural e educacional financiada pelo Estado.


Pela reconstituição do Ministério da Cultura com funções de Estado. Cobrar o assédio moral praticado por gestores de órgãos públicos contra funcionários.


Eles asfixiaram as atividades artísticas e culturais, acadêmicas e científicas porque sabem que não somos cúmplices e estamos denunciando as necropolíticas  praticadas por Guedes, Salles, Araujo e demais da alcatéia de predadores e propomos a construção de um mundo mais justo, fraterno e solidário, onde a centralidade deve ser o ser humano e a natureza, não o cassino financeiro.

Pelos direitos sociais estendidos a todos e todas trabalhadores e trabalhadoras nas artes e na Cultura. Pelo reinício do financiamento público de todos os PROJETOS ARTÍSTICO-CULTURAIS.


Os Estados Gerais da Cultura, a Escola Superior de Paz e o Cineclube Muiraquitã assinam o pedido do Impeachment do capitão genocida com um grito: “Desengaveta Rodrigo!”. Antes tarde do que nunca!

Texto: Silvio Tendler

Pensata lida pelo ator Eduardo Tornaghi no encontro com Bira Carvalho – Fotografia e acessibilidade na periferia