Hino dos Estados Gerais da Cultura

Composição musical de Delayne Brasil

Com arte, ciência e paciência, mudaremos o mundo”.

Do povo, a praça, a rua e avenida

Cultura, a nossa casa, a cara da vida

A sua cloroquina não cola. Com o nosso coro não rima

Não vem, sacana! Prevenção é vacina.

E sai da frente, nossa face não é fake!

E sai da frente, nossa face não é disfarce! 

Aqui, ninguém se engana, não cai no seu mau clima

A Terra não é plana, e o mundo há muito gira

Quem pensa que está por cima, agora, não sabe que o jogo vira

Nem arma, nem armadura na nossa fantasia

E sai da frente, nossa face não é fake!

E sai da frente, nossa face não é disfarce! 

A esperança avança, sempre na folia

A prova dos nove é a alegria

Semente que se renova, sai p’ra lá necrofilia!

A nossa costura é a utopia

E sai da frente, nossa face não é fake!

E sai da frente, nossa face não é disfarce! 

As cores se enamoram em prosa e poesia

Só azul e rosa é muita miopia

Estados Gerais da Cultura, mais e mais no dia-a-dia

Estados Gerais da Cultura, mais e mais no dia-a-dia

E sai da frente, nossa face não é fake!

E sai da frente, nossa face não é disfarce! 

Do povo, a praça!

Carajás, Carandirú, Colniza, Pau d’Arco, Candelária, Henry Borel

foto: MST – todos os direitos reservados

Dia 17 de abril de 2021, completaram-se 25 anos do dia em que 19 trabalhadores sem-terra foram brutalizados e assassinados pela polícia militar paraense, no crime que ficou conhecido como o Massacre de Eldorado dos Carajás. Alguns dias depois, mais dois trabalhadores que estavam entre os quase setenta violentamente feridos, morrem, registrando 21 mortes no total, todos executados a mando da máfia que detém o poder no país e pelas mãos daqueles que trazem como lema – infeliz ironia – a expressão “proteger e servir”.

A violência contra as classes oprimidas faz parte de nossa história. É quase possível dizer que está na natureza do Brasil, colonizado, subjugado aos interesses dos poderosos, essa chaga da violência e do extermínio.

A terra, que até então nunca havia sido de apenas um dono, e que era compartilhada por grupos sociais diversos, mas que a reverenciavam e respeitavam, foi pilhada por invasores, dividida em capitanias e explorada, assim como o foram os que por aqui habitavam.

Não satisfeitos, os invasores importam vidas humanas e as escravizam por mais de trezentos anos para depois abandoná-las à própria sorte, uma violência inominável que até hoje produz reflexos profundos na estrutura social do país.

Aos primeiros habitantes lhes foi negada a terra. Aos que para cá vieram sob o jugo do chicote e do açoite, o acesso à terra jamais foi sequer cogitado. Sem direito ao retorno e sem direito a uma pátria.

A terra, assim como a vida, sempre foram sugadas, aviltadas, suprimidas, por quem não respeita a primeira e não valoriza a segunda.

Hoje, um dia da triste lembrança dos vinte e cinco anos daquele 17 de abril fatídico na curva do S, região de Eldorado dos Carajás, estamos diante de um país que assiste impassível ao extermínio que ultrapassa 370 mil vidas, tratadas com desprezo, deboche e desumanidade por um facínora que comanda uma gangue de genocidas sanguessugas que exploram, desprezam, humilham e matam brasileiros e brasileiras pela mesquinhez e interesse, seja ele do capital predatório, seja pelo simples prazer da prática do sadismo.

Os 21 mártires de Eldorado dos Carajás devem ser lembrados, assim como devem ser lembrados os 111 presos do Carandirú, os 8 meninos da Candelária, as 9 lideranças indígenas de Colniza, os 10 trabalhadores sem-terra de Pau d’Arco, a criança de quatro anos recentemente trucidada por seu padrasto miliciano, os cinco meninos de Costa Barros, as dezenas de crianças mortas pelos tiros da PM nas comunidades, os jovens negros que morrem a cada minuto pelas mãos dos agentes de Estado, os mais de 500 mil mortos que logo logo veremos, fruto da ação direta e da omissão voluntária do genocida bolsonaro.

Todos eles têm nomes e sobrenomes. Todos são vítimas desse mesmo Brasil que há quinhentos anos sequestra, tortura e mata corpos, almas, sonhos, futuro.

Que jamais se esqueça.
Que nunca mais se repita.

Pensata lida por Eduardo Tornaghi no encontro com a escritora Conceição Evaristo – “A gente combinamos de não morrer”.

Zé Limeira o poeta do absurdo

Para receber um grande artista como Renato Teixeira resolvi me ancorar numa lenda da sabedoria sertaneja, Zé Limeira, homem que vale a pena prestar a atenção:

“Eu me chamo Zé Limeira
Da Paraíba falada,
Cantando nas Escritura,
Saudando o pai da coalhada,
A lua branca alumia,
Jesus, José e Maria,
Três anjos na farinhada”.

“Napoleão era um
Bom capitão de navio,
Sofria de tosse braba
No tempo que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio”.

“Meu verso merece um rio
Todo enfeitado de coco,
Boa semente de gado,
Bom criatoro de porco,
Dizia Dom Pedro Segundo
Que a coisa melhor do mundo
É cheiro de arroto choco”.

Aonde Limeira canta
O povo não aborrece
Marrã de onça donzela
Suspira que bucho cresce
Velha de setenta ano
Cochila que a baba desce!

Do livro “Zé Limeira, poeta do absurdo” do paraibano Orlando Tejo (1935-2018) #poesia

Zé Limeira foi lembrado e homenageado por Eduardo Tornaghi no encontro com Renato Teixeira. Estiveram presentes recepcionando Renato; Silvio Tendler, Katya Teixeira, Osni Ribeiro, José Carlos Meihy,Janine Malanski

Quem foi Zé Limeira

  • Zé Limeira (1886-1954)foi um cordelista/repentista brasileiro. Ficou conhecido como Poeta do Absurdo. Nasceu no sítio Tauá, em Teixeira, considerado o principal reduto de repentistas no século XIX. Os temas que abordava em suas poesias e repentes eram variados e chegavam, muitas vezes, ao delírio.
  • O livro Zé Limeira, o poeta do absurdo, de autoria do jornalista e poeta paraibano Orlando Tejo (1935 – ) recriou a figura mitológica do cantador nordestino. Para alguns, o livro é que, de fato, inventa o personagem e estaria mais próximo à criação literária do que do recorte biográfico. [Zé Limeira tornou-se tão famoso, devido ao livro de Tejo, que hoje certamente muitos versos absurdos de outros poetas são transferidos para ele. Isso sem falar nos versos (…) que teriam sido escritos por ´Otacílio Batista e outros amigos de Tejo, depois que este se preocupou com a pequena quantidade de versos autênticos que teria recolhido”, escreve Bráulio Tavares. Fonte: Wikipédia

O Trauma na Pandemia do Coronavírus

Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas analisadas pelo psiquiatra e psicoterapeuta, Joel Birman

A pandemia representa a maior catástrofe sanitária do século XXI. O século XXI começou com essa pandemia. É o acontecimento fundador, que colocou em questão o espaço social, as nossas ideologias políticas, o retorno a dias de extrema direita no mundo, o questionamento do discurso da ciência através dos negacionistas. Certamente é a maior tragédia da História do Brasil. Se a gente for lembrar que até então as 2 maiores tragédias foram as 35mil mortes ocorridas na gripe espanhola no século passado, no Pós 1a Guerra Mundial e, anteriormente na Guerra do Paraguai onde morreram 50mil pessoas.

No negacionismo entra em jogo aquilo que o Freud chamava o “mecanismo psíquico da recusa”, e que localizava no campo das perversões. Um sujeito perverso ele olha pra algo e em um segundo momento ele não reconhece aquilo que ele percebeu. Ele faz uma clivagem psíquica: perceber mas recusar o mal e a partir daí desafiar a morte, como uma defesa maníaca que essa recusa diante do mal coloca. É muito diferente daquilo que se  chama de ‘denegação’, que se passa num campo comum das neuroses.”

Nós estamos caminhando pra 600 mil mortos nos EUA que é o país em que mais se matou gente nessa pandemia. De forma que esse número de mortes nos EUA ele corresponde a mais mortes do que aconteceram na 1ª e na 2ª Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã, do que todas as grandes guerras que ele participou no século XX.

Os órgãos de segurança sanitária americana anteciparam ao Donald Trump a possibilidade de existir uma grande pandemia, esses relatórios foram jogados na lata do lixo, não foram levados em consideração, com a crença de que isso apenas atrapalharia o crescimento econômico americano.

Todos os grandes economistas em escala planetária afirmam que nós teremos uma recessão igual ou comparável à grande crise do capitalismo em 1929. Essa recessão atual é maior do que a recessão de 2008, a crise do sistema imobiliário que quebrou o sistema. Nós pagamos essa dívida, porque os governos ressarciram os homens do capital financeiro e as empresas do capital financeiro que faliram no planeta.

Em 2018 a OMS considerou que as depressões eram consideradas como sendo a doença mais prevalente internacionalmente que existia. Até então, antes de 2018, esse lugar de doença mais prevalente existente no mundo era ocupado pelo câncer, pelas doenças cardíacas, doenças degenerativas do sistema nervoso,  diabetes, transtornos metabólicos, mas jamais pelo campo da saúde mental. Esse número já era o efeito da crise econômica de 2008, onde o sistema de precarização social foi altamente intensificado em escala global. Onde nós assistimos a esses êxodos dos refugiados que aumentou muito nos últimos 10 ou 15 anos, de pessoas que saíram da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América Latina, em relação aos países ditos mais ricos, EUA ou países europeus, em nome da sobrevivência. Isso se dá com a expansão do capitalismo neoliberal como forma de vida desde os anos 80 e 90 até 2020, e que teve um ponto de inflexão importante na crise de 2008.

Não se pode avaliar os efeitos dessa pandemia sem desconsiderar essa precarização do mercado de trabalho, e das condições de vida, onde elas não tem mais perspectiva de futuro. Onde a preocupação com o  bem estar das pessoas, desapareceu do mapa e a única coisa que importa é a reprodução, a lucratividade empresarial ou a lucratividade do capital econômico financeiro.

Em “A Crítica da Razão Negra”, Achille Mbembe diz: o negro é o nosso vir a ser. Através de toda essa precarização social que todos nós estamos ameaçados hoje vamos todos nos tornar negros. A metáfora da negritude marca todo o planeta nesse mundo neoliberal.

A condução sanitária da pandemia ela está inteiramente articulada com certas formas de governabilidade. Podemos considerar três modalidades diferentes de governabilidade. A primeira  foi a que se deu nos países asiáticos cujos resultados sólidos sobre a pandemia são os melhores do mundo, seja a China, seja o Vietnã, seja a Tailândia, seja a Coreia do Sul… São países que não só respeitaram as regras do discurso da ciência, orquestrada pela OMS, como também eles deram o auxílio às suas populações para que elas pudessem suportar um lockdown radical. Ela tem como background uma forma de organização social dos países asiáticos diferente dos países ocidentais. Na Europa, nos EUA, ou no Brasil, nós somos sociedades individualistas, onde, em geral, quando se fala em Estado você tem aquela famosa formulação: “Hay gobierno? Soy contra”. Quer dizer há aquela condição de ter uma posição resistente em relação ao Estado, em nome de uma certa liberdade individual.

Dentro dessa condição, desses países de tradição cultural individualista: França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha… todos esses países, em nome do discurso da ciência, empetraram o lockdown severo, em diferentes momentos no primeiro semestre do ano passado. Essas medidas políticas de Estado, é a segunda forma de governabilidade.

Agora nós temos essa terceira forma de governabilidade. O Brasil e os EUA deram as costas ao discurso da ciência em nome da produtividade econômica, uma prática, efetivamente, necropolítica, de matar as populações pobres. Sustentada através de uma suposta liberalismo político, de que o Estado estaria abusando do seu direito de querer delinear o controle sobre a vida coletiva, atropelando as liberdades individuais. Nós tivemos não só um negacionismo do discurso da ciência, mas uma espécie de colchão protetor desse discurso amparado efetivamente pelo discurso neopentecostal.

“A população brasileira ela foi exposta a uma dualidade discursiva. Aqueles que dizem que o vírus é uma gripezinha, e aqueles que dizem, não, é uma doença mortal e grave. Essa dupla mensagem, que é esquizofrenogênica, ela provocou um estado confusional na população brasileira.”

A estratégia de defesa do psiquismo diante de qualquer perigo que nos acossa são de duas ordens: transformar o invisível em visível e, segundo, transformar o indizível em dizível. Freud tem um texto famoso chamado “Medição, Sintoma e Angústia”, onde ele tenta mostrar que essa transformação se faz através daquilo que ele denominou de angústia sinal. Na pandemia, nós não podemos desenvolver a angústia sinal. Nós somos afetados por aquilo que eu chamo de uma angústia real, que é a famosa neurose de angústia, ou aquilo que os psiquiatras dos anos 80 passaram a chamar de síndrome do pânico, é a sensação que a gente tem da morte iminente. O que acontece com a COVID é que nós temos uma neurose traumática produzida  por essa incapacidade de antecipação do perigo.

O nosso antigo normal ele não nos representava mais. Essa estrutura hierárquica racial que fazia parte do antigo normal não nos interessa. Nós temos que aproveitar a situação que nós estamos vivendo para colocar em questão esse racismo estrutural.

A primeira formação psíquica é aquilo que eu chamo da neurose de angústia

Em seguida a  gente tem uma segunda formação psíquica chamada de hipocondria que isso quer dizer que nós passamos a perder uma naturalidade dos estímulos e excitações provenientes do nosso corpo. Qualquer tosse que eu tenho, eu acredito que já é a presença do coronavírus, qualquer dor muscular que eu tenha, qualquer febre é presença do coronavírus, qualquer corisa, tudo é uma máquina girando em torno do coronavírus, e isso faz com que, se eu já estava panicado, em plena neurose de angústia, eu fique muito mais, de uma forma permanente, com essas sensações hipocondríacas.

Há uma terceira formação psíquica importante do coronavírus: são as depressões e  a melancolia.Há uma despontecialização da nossa vitalidade. De maneira que a gente teve aqui nessa pandemia situações clínicas muito sérias que aconteceram sobretudo com idosos, pessoas que não podiam ver os seus filhos ou seus netos, seja vivendo com seu companheiro ou companheira, sejam vivendo sozinhos, que a partir de um determinado momento, eles começaram a se sentir esvaziados de si e começavam a se abandonar, sobre a forma de não tomar banho, não se alimentar mais, e muitos deles foram conduzidos ao suicídio. 

Mas uma quarta formação psíquica muito importante é o incremento de rituais obsessivos compulsivos que se dá pelas regras higiênicas estabelecidas pelo discurso da medicina. É uma variante da hipocondria. Elas passam o dia lavando as mãos com sabonete, com sabão, com álcool, uma, duas, N vezes, possíveis e mesmo assim ficando angustiadas o tempo todo se elas não foram imprudentes e foram contaminadas pelo coronavírus.

Uma quinta formação psíquica importante é evidentemente o aumento do número, de beber, de você fumar, tomar tranquilizantes ou antidepressivo, drogas, um incremento do uso de drogas, médicas ou não médicas durante a pandemia, da mesma forma que há um incremento da ingestão de alimentos. Existe uma bulimia que se dá durante a pandemia em que as pessoas estão engordando. Há uma sensação de que através do alimento, através do tranquilizante, do anti depressivo, através da maconha… a gente possa de alguma maneira lançar mão de uma forma de tratamento de si, em uma espécie de ato curativo, para tentar se curar desse mal que ameaça a vida delas.

A sexta formação psíquica importante é o aumento da violência doméstica. Ela se dá sobretudo da parte dos homens, através da violência, pelo exercício da força física, eles dizem assim, esse desamparo, esse desalento não é meu, mas é da minha mulher, da minha companheira ou dos meus filhos. Em que eles acreditam que com isso eles tem a força, e os outros tem a fraqueza. É uma maneira ilusória deles lidarem com sua própria fragilidade diante do mal.

Uma sétima formação psíquica é a reação das crianças à pandemia. Interações sociais das crianças se empobrecem, elas ficam presas a esse universo propriamente doméstico. E isso faz com que as crianças sejam tomadas não só pela angústia e pelas depressões a que eu me referi anteriormente, mas também que as crianças passam a responsabilidade aos seus pais por aquilo que está lhes acontecendo. As crianças tendem a acusar os pais de não terem podido proteger elas dessa perda da capacidade de vida que elas estão tendo, durante mais de um ano.

E a oitava formação psíquica, que eu queria destacar novamente, é a melancolia. Agora ligada a um aspecto muito particular, que tá se colocando hoje, mas vai se colocar mais no futuro, que é a maneira pela qual nós vamos lidar com esses cadáveres. Nossas práticas funerárias atuais, por conta do fato de que as pessoas ao irem a um cemitério elas podem ser contaminadas,  elas se restringem a 1, 2 ou 3 pessoas no máximo, se tanto. De maneira que esses rituais funerários deixam de existir. Segundo Freud, os rituais funerários dignos são condição pro trabalho de luto. O que ele dizia é que quando a gente não consegue fazer o trabalho de luto, nós caímos em uma condição melancólica. Eles ficam na condição de mortos vivos porque eles não tiveram um enterro digno. Pra que a gente possa fazer o nosso trabalho de luto individual, singular, a gente precisa que esses mortos sejam reconhecidos publicamente como mortos, de que a gente preza esses corpos mortos.

Texto transcrito e editado pela cineasta Maria Rita Nepomuceno sobre a fala de Joel Birman, cujo tema tratou do conteúdo do seu livro ‘O Trauma da Pandemia do Coronavirus”, acessível ao público nesse link: Grupo Editorial Record. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

‘Lucidez é transgressão neste momento. De que lado você está do conflito?’

foto retirada do video Youtube/ Encontro EGC

Qual é o ponto que orienta a tua vida? Para dar lucidez você precisa ter uma luz. O que é que ilumina? Quais são os seus critérios éticos, quais são os seus critérios de humanização.

Lucidez é, nesse momento da História, nessa cultura que vivemos, é transgressão. Não tenham medo de lucidez transgressora, que essa é a lucidez que nós precisamos e devemos de ter nesse momento.

Então muito bom ouvir tudo isso que nos disse o Pastor Henrique que trás pra nós o compromisso de lutar e nós não podemos, em nome de um pacifismo, ter medo da luta e ter medo do conflito. Nós vivemos uma realidade conflitiva, a nossa pedagogia de conflito está presente. A pastoral, dizia muito o Padre Libanio, é uma pastoral do mundo de conflito, e quando você está num mundo de conflito você tem que ter lado. De que lado você está do conflito?

E eu acredito que o Pastor Henrique já deixou bem claro pra nós de que lado nós estamos. Eu lembro muito aquilo que nos disse o Leonardo Boff: “todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto”. Então é isso que é preciso: você é Pastor a partir de que ponto? Você é o Padre a partir de que ponto? Você é o intelectual, é o artista, é o que resiste, o que luta, a partir de que ponto. Qual é o ponto que orienta a tua vida? Para dar lucidez você precisa ter uma luz. O que é que ilumina? Quais são os seus critérios éticos, quais são os seus critérios de humanização.

E a lucidez é muito ligada ao discernimento. Nós vivemos num momento tão atormentados de informações, de fakenews, e uma mídia muitas vezes comprometida, não poucas vezes, comprometida com o poder, com o poder político, com o poder econômico, que as pessoas não são capazes mais de discernir, de discernir pra fazer escolhas. Eu lembro muito o que Padre Jose Pamblan, é um grande teólogo da libertação, belga de nascimento, foi expulso do Chile, foi expulso do Brasil, morreu aqui no Brasil, no sertão da Paraíba, e ele dizia: “se você não tiver liberdade de escolher, se você não puder escolher, você não consegue exercitar a liberdade. A liberdade é um exercício. Assim como o discernimento é um exercício. Você precisa ter uma pedagogia de discernimento, uma pedagogia de perceber o sentido, a direção, o senso, pra onde você vai, o que é que você está construindo.

Pra que você tenha lucidez eu acredito que nós temos que ter o senso histórico, que a nossa luta é uma luta que se dá na História, não está ligada a minha intencionalidade, eu tenho que aderir a essa luta, mas ela é uma luta histórica.

Todos esses nomes que foram chamados, todos esses nomes que são lembrados, que são memoráveis, porque estão na nossa memória, eles mostram isso, eles demonstram isso: de que lado nós estamos, e que essa luta ela é histórica, ela vai sendo construída. Por isso a gente tem que ter bastante consciência de que nem sempre nós vamos ganhar, que muitas vezes nós vamos perder. Hoje na Liturgia Católica se leu A Paixão no Evangelho de Marcos, que é um Evangelho extremamente conflitivo, e é interessante que o Papa Francisco lembrou hoje no Vaticano que Jesus foi levantado na cruz para descer até os mais oprimidos.

Você tem que ler o Evangelho com os pés no chão. Você tem que ter os pés no chão da História. Você tem que saber a partir de que classe social você está lendo. De que grupo você está vendo e todas essas questões que são levantadas como de gênero, essas questões de identidade de gênero, as questões étnicas, as questões raciais. Elas todas são perpassadas pelas questões de classe. Então tudo isso tem que fazer parte desse conjunto que tira de nós esse fundamentalismo simplista e que nos leva a não ter medo de enfrentar os conflitos, de enfrentar situações, as mais difíceis, seja no interno das Igrejas e das Comunidades, seja na sociedade como um todo, na cultura, em todas essas dimensões da existência humana.

O conflito está sempre presente, todos os dias quando eu convivo com os irmãos e as irmãs de rua, se explicita, diante dos meus olhos, o conflito dos que estão descalços, do que estão sofrendo. A importância de nós termos a lucidez de perceber quanto que os oprimidos são coniventes com os opressores, quanto que nós temos que investir, trabalhar, nos comprometer com uma pedagogia libertadora.

Eu gosto muito, lembro muito e repito muito nas lives que tenho participado, a frase  e o pensamento de Simone de Beauvoir: “os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos”. E eu acredito que esse é um chamamento muito forte que a arte para a cultura, para a leitura, para toda a luta e a nossa postura de que há um conflito com os poderosos, mas há um conflito contra o pensamento dos poderosos que é colado na cabeça dos oprimidos, isso nós estamos vivendo nas nossas comunidades, no meio do nosso povo, de uma maneira, muitas vezes, dura demais.

Que o fundamentalismo ele é festejado pelos poderosos e os poderosos tem a artimanha de colar o seu pensamento na cabeça dos fracos, dos dominados e acredito que uma luta nossa muito grande é que a mulher não pense com a cabeça do homem, que o negro não pense com a cabeça do branco, que a criança não pense com a cabeça do adulto, que os pobres não pensem com a cabeça dos ricos, que os despojados não pensem com a cabeça daqueles que despojam. Eu acho que isso é uma luta muito grande, um desafio muito grande pra nós nesse momento.

A retórica do ódio ela está fazendo parte da nossa gramática, ela está sendo repetida e eu fico muito chocado quando vejo até um morador de rua com a retórica do ódio, como é que ele conhece, como é que na favela, na comunidade, como é que muitas vezes até dentro do cárcere.

Quantas vezes até a população negra que é tratada de maneira tão cruel pelo genocídio e pelo racismo, essa população, muitos ainda repetem essa retórica do ódio. Convencer nossos irmãos cristãos que são fundamentalistas que justificam o genocídio. Nós estamos num tempo em que essa questão da lucidez e do discernimento chamam demais. Vocês vejam o que aconteceu agora com uma mulher artista que, muito querida pelo povo brasileiro, e que externou uma posição em relação à população carcerária que causou um impacto.

É preciso que nós não tenhamos medo do impacto, não tenhamos medo do conflito, de desvelar esse conflito, explicitar essa lucidez é a explicitação desse conflito , é a explicitação dessa opressão que vai entrando na nossa cultura, que vai entrando na nossa racionalidade. Quando alguém responder pra você, diante de uma situação: “é lógico”, toma cuidado, porque aí tem problema. Quando alguém diz: “ah, você tem que se vingar”, é lógico; “ah, você tem que estar por cima”, é lógico. Cuidado. Tudo aquilo que faz parte da lógica da opressão, que faz parte da lógica da dominação que entrou em nós, nós mamamos muita vezes essa lógica no nosso leite materno, nós comemos dessa lógica no nosso alimento cotidiano.

Então nós temos que ter a coragem de desmontar a lógica da dominação, de desmontar pela lucidez a lógica da opressão. É o que há poucos dias causou muito impacto aqui em São Paulo quando diz “tira um prato de comida” que vai ver como que Padre Julio grita. Pára. Você tem que gritar mesmo! E não ter medo de incomodar.

E não ter medo de remover os obstáculos que nos atingem e eu acho que isso a gente tem que ter muita coragem porque você, eu como um padre, um homem branco, esperam de mim, determinados comportamentos, esperam de mim determinadas atitudes e eu tenho que romper com isso, ou esperam de um pastor que não diga nada disso que diz o Pastor Henrique. Esperam de um intelectual que seja dentro de normas e limites, de regras. E nós temos que ter a coragem de transgredir.

Lucidez é, nesse momento da História, nessa cultura que vivemos, é transgressão. Não tenham medo de lucidez transgressora, que essa é a lucidez que nós precisamos e devemos de ter nesse momento.

Trecho transcrito pela cineasta Maria Rita Nepomuceno da fala de Padre Júlio Lancellotti durante o encontro: Lucidez não ocorre sem conflitos. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual

‘Mais importante do que a crença religiosa é o amor como prática revolucionária’

Lucidez é um ato de reflexão intelectual, de lágrima existencial, e de atitude política revolucionária.

Lucidez é fazer arte engajada com sentido de democracia, de cidadania, porque toda arte deveria ser uma antecipação do futuro no presente

Obrigado ao Coletivo Estados Gerais da Cultura pelo convite para eu participar desse espaço e dividir a mesa com Padre Julio Lancellotti que é uma referência teológica, pastoral, política e existencial para minha vida, eu realmente já faz um bom tempo, olho para o padre Júlio como um recado de Deus, um sinal do reino de Deus entre nós, então eu fico muito feliz, muito grato, de participar desse espaço. Eu quero defender a perspectiva de que lucidez é enxergar o mundo a partir da ótica, da lente, da experiência e da luta dos oprimidos, isso significa ver a realidade com lucidez e atuar nela para transformá-la, sempre em prol dos oprimidos, sempre num processo criativo, construtivo de libertação e emancipação humana.

Então eu quero pegar um registro do chamado Canto de Maria que está lá no Evangelho de Lucas, capítulo1. Deixando evidente a minha perspectiva ecumênica, minha perspectiva inter-religiosa, minha perspectiva de celebração da diversidade, mais importante do que a crença religiosa é o amor como prática revolucionária, o amor que transforma a realidade, é o amor ético, político, relacional, o amor que se inquieta, se indigna diante de toda injustiça.

Então eu vou beber na minha tradição de fé, mas nessa perspectiva dialogal, aberta, ecumênica, inter e suprarreligiosa, bem, bebendo na minha tradição de fé, na espiritualidade subversiva, inquieta,  desobediente do evangelho, o Canto de Maria é muito interessante porque na narrativa lá do Evangelho, o anjo mensageiro de Deus vai na periferia e dá uma notícia a uma mulher numa sociedade patriarcal, pobre numa sociedade desigual.

Maria recebe a notícia de que ela estava sendo convidada  a gestar e a parir a esperança, o salvador, o messias. Então imagina só o caráter intrigante dessa cena, o anjo não foi a Roma, capital do Império, o anjo não foi à Jerusalém, o anjo não foi a grandes cidades, o anjo foi lá na periferia dizer para uma mulher, pobre, que ela era bem aventurada, que ela era lembrada por Deus, e que dentro do ventre dela estava para nascer uma esperança para o povo. Diante dessa notícia, diante desse convite, Maria adere, Maria confia, Maria crê e Maria canta, Maria produz arte, Maria produz poesia diante do seu emponderamento.

E no Canto de Maria, diante da visita do anjo, diante da sua adesão a essa convocação divina, Maria canta e o canto dela em um determinado momento tem um momento que ela fala Deus veio para destronar os poderosos, Deus veio para tirar a arrogância do coração humano, e atenção a esse final, que é nesse final que eu vou me fixar, Deus veio para exaltar os humildes, para encher de bens os que tem fome e despedir de mãos vazias os ricos. Uma mulher numa sociedade patriarcal, pobre numa sociedade desigual, moradora da periferia é lembrada e visitada por Deus.

Diante dessa epifania, diante dessa poesia, diante desse chamamento, diante dessa luz, desse brilho de esperança, Maria canta, produz arte, afirma, com seu corpo, com sua voz, a sua esperança!

E nesse canto ela está dizendo que a manifestação divina tem a ver com exaltar os humildes e destronar os poderosos, encher de bens os famintos e despedir de mãos vazias os ricos. Em outras palavras, ao que tudo indica, a manifestação de Deus revela e acentua determinados conflitos que existiam naquela sociedade, uma sociedade desigual, uma sociedade em que o povo lutava para sobreviver, uma sociedade em que a fome era uma realidade cotidiana. E ela está dizendo com seu canto, com sua poesia, com seu corpo, que a manifestação de Deus, a manifestação divina, a manifestação sagrada não é neutra, não é imparcial, não é uma igualdade que mascara as opressões.

Mas que a manifestação de Deus vem exaltar os humildes, encher de bens os famintos e despedir de mãos vazias os ricos, portanto a manifestação divina é uma manifestação que conclama a justiça, e justiça significa tirar dos opressores seus instrumentos de opressão, tirar dos opressores seus instrumentos de privilégio, tirar dos opressores seus instrumentos de poder. Justamente para que os oprimidos, os pequeninos, para que os mal tratados, para que os crucificados da história possam ter plena liberdade, vida abundante.

Pegando o Canto de Maria como referência e olhando para a História do Brasil, pegando o Canto de Maria como referência e olhando para o Brasil hoje, eu sou conclamado a perceber o mundo como um mundo que tem divisões que fraturam, divisões que machucam, divisões que maltratam. Nós estamos em um dos países mais desiguais do mundo, com a riqueza concentrada em poucas mãos enquanto milhões de brasileiros e de brasileiras passam fome, nós temos nas grandes cidades especulação imobiliária para valorização de imóveis enquanto milhões de pessoas moram de maneira precária ou estão nas ruas.

Nós temos no Brasil latifúndios improdutivos a perder de vista, especulação fundiária enquanto milhões de brasileiros não têm acesso a um palmo de terra para plantar e dali tirar o seu sustento. Nós estamos num país que durante quatro séculos escravizou o povo negro, e até hoje o racismo é um dado estrutural da nossa realidade, a cada 23 minutos, um jovem negro é executado, quase 60% do sistema carcerário é formado por negros ou por pardos, nós temos uma subrepresentatividade do povo negro no poder e nos espaços de decisão. A pele negra é culpada até que se prove o contrário.

Nós estamos num país em que as mulheres ainda são subjugadas, em que o estupro é uma cultura, fruto de um machismo doentio, nós estamos em um país em que a cada 28 horas um LGBT é executado, que a expectativa de vida de transexuais e de travestis é de 35 anos, por conta da precariedade, por conta da violência, por conta de um ambiente patriarcal, heteronormativo, baseado no ódio. Ou seja, um pais cunhado, forjado e formado em múltiplas opressões.

Lucidez é olhar para essa realidade fraturada e ter consciência formada a partir dos oprimidos, é ver a realidade a partir dos de baixo, é atualizar o Canto de Maria. Não há possibilidade de futuro democrático justo para o Brasil se a gente não fizer reparações profundas, se a gente não tocar em privilégios cristalizados, se a gente não repartir e dividir o poder, se a gente não fizer aquilo que é necessário.

E daí é muito importante perceber que neutralidade significa complacência, que neutralidade significa cumplicidade diante dessas opressões e dessas violências estruturais. Uma afirmação, Padre Julio, que sempre me chama muita atenção, “Somos todos brasileiros”, essa é uma afirmação curiosa, e ao mesmo tempo perigosa, porque “Somos todos brasileiros”, uma pretensa igualdade, protocolar, formal, bonita no texto, mas que não corresponde à realidade porque, conforme falei, determinados corpos no Brasil são pré-selecionados para a morte.

A cidadania no Brasil é uma cidadania que tem cor, a cidadania no Brasil é uma cidadania que tem CEP, a cidadania no Brasil é uma cidadania que tem gênero, a  cidadania no Brasil é uma cidadania que tem orientação sexual. Esse ainda é o país dos homens brancos ricos, ainda existe uma atualização da colonização. Estamos no meio de uma pandemia, diante de um quadro geral de desprezo, de genocídio, de mal trato sobre o povo e o que nos cabe?

Qual é a lucidez? A lucidez é o grito. A lucidez é a indignação. A lucidez é a rebeldia. A lucidez é a marretada do Padre Julio Lancellotti. A lucidez é a ocupação sobre o latifúndio improdutivo. A lucidez é a organização dos sem teto em prol de moradia. A lucidez é o movimento negro tocando na ferida do racismo estrutural. A lucidez é a revolta, a rebelião, a contestação das mulheres, tocando os nossos privilégios enquanto homens que na sociedade patriarcal tem privilégios garantidos e vantagens absolutamente resguardadas.

A lucidez é a heresia diante do fundamentalismo, quando o fundamentalismo pensa em monopolizar a verdade, lucidez é a heresia, é desvio, lucidez é a esquina, lucidez é a encruzilhada, lucidez é o terreiro, lucidez é o teatro, lucidez é a pintura, é o desenho, é o Canto de Maria. Então o que eu quero propor aqui é que Lucidez é enxergar o mundo a partir da lógica dos debaixo,  é enxergar a realidade a partir da experiência dos sem poder, é invadir e ocupar o centros do poder a partir do transbordamento e da rebelião das periferias.

Lucidez é fazer arte engajada com sentido de democracia, de cidadania, porque toda arte deveria ser uma antecipação do futuro no presente, talvez deveria ter aí uma relação entre arte, poesia e profecia, porque todas elas resguardam o futuro, e em nome do futuro, redimem o passado transformando a realidade do presente. Em tempos em que a naturalidade é odiar, lucidez é amar. Em tempos em que a naturalidade é se vingar, lucidez é perdoar. Em tempos em que naturalidade é uma união falsa entre desiguais, lucidez é acentuar o conflito para que uma verdadeira igualdade possa ser construída e forjada.

Quando eu falo conflito não é no sentido da vingança, não é no sentido de toma lá, dá cá. Conflito significa reconhecer as fraturas da sociedade, se colocar ao lado dos crucificados e dos pequeninos, para a gente produzir reparação. Nós só chegaremos à igualdade por meio da equidade. Ou seja, primeiro priorizando os de baixo, tocando em privilégios estabelecidos. Eu quero retomar aqui pra concluir esse trecho final do Canto de Maria porque é uma excelente notícia para os oprimidos. Exaltar os humildes e encher de bens os famintos. Mas olha a péssima notícia para os opressores e para os ricos: despedir de mãos vazias os ricos.

Aparentemente aquela mulher pobre e periférica da Palestina do Primeiro Século, visitada pelo anjo, percebeu que não há produção de justiça sem tocar em privilégios estabelecidos. Como Dom Hélder falou, quando dei comida aos pobres me chamaram de Santo. Quando perguntei porque tem pobre me chamaram de Comunista. Ou seja, socorrer as pessoas que estão em uma situação de vulnerabilidade, é fundamental porque quem tem fome, tem pressa. Mas, além disso, lucidez, além de socorro, é reparação.

Lucidez, além de assistência, é produção de justiça, e justiça não é vingança, mas é destituir os opressores do seu lugar de privilégio para que todos e todas possam ter vida plena e vida abundante. Exaltou os humildes, despediu de mãos vazias os ricos, tiveram uma perda, para que os pobres tenham plenitude, para que todos tenham o que comer, portanto gostaria de propor isso: lucidez é chorar a dor do mundo por enxergar na dor do mundo o nosso próprio mundo de dor.

Eu vou repetir isso:  lucidez é a capacidade de chorar a dor do mundo por ver na dor do mundo o nosso próprio mundo de dor. É quebrar a frieza, quebrar a indiferença, quebrar a lógica da meritocracia, do distanciamento hipócrita, e se envolver, e se engajar, é uma lágrima militante, é uma dor engajada, é uma paixão que se movimenta, é um sentimento que vira atitude. Como diz Paulo Freire: “esperança” não vem do verbo esperar, ficar aguardando, mas vem do verbo “esperançar”, ou seja, fazer a esperança acontecer e a gente faz a esperança acontecer com o Canto de Maria, a gente faz a esperança acontecer com arte, com poesia, cinema, com pintura, com literatura, com terreiro, com Igreja, com movimento social, com luta política, quando a margem ocupa o centro, quando a periferia impõe o seu lugar, quando os crucificados da História anunciam sua ressurreição.

Já que tá chegando a Páscoa, vou terminar com a metáfora: a cruz que é assumir a derrota dos derrotados e a ressurreição. Assumir a rebeldia contra tudo aquilo que mata. Melhor estar ao lado dos crucificados do que ao lado dos que crucificam.  Melhor anunciar a ressurreição a partir da margem do que namorar os protocolos do Centro. Portanto lucidez não é quietude diante da injustiça. Lucidez é no conflito ou na conflitividade da História, ver a História a partir das lentes de Dandara, de Zumbi, de Antônio Conselheiro, de João Cândido, de Irmã Dorothy, de Marielle, de Martin Luther King, de Malcom X, de Rosa Park, de Dom Helder, de Frei Tito, de Carolina Maria de Jesus. Hoje significa ver o mundo a partir daqueles que estão com fome, daqueles que estão nas ruas.

Lucidez é definir a nossa consciência e o sentido da nossa vida pela lente e pela experiência dos oprimidos, para, na crucificação com eles e com elas anunciar a ressurreição da esperança e a vitória dos pequeninos. Pra mim lucidez é um ato de reflexão intelectual, de lágrima existencial, e de atitude política revolucionária.

Trecho transcrito pela cineasta Maria Rita Nepomuceno da fala do Pastor Henrique Vieira durante o encontro: Lucidez não ocorre sem conflitos, do qual participou também Padre Júlio Lancellotti. Maria Rita é apoiadora dos Estados Gerais da Cultura, atua na área de criação e curadoria em audiovisual.

‘Faz escuro mas eu canto’

Thiago de Mello – foto via internet

O encontro entre Padre Julio Lancellotti e o Pastor Henrique Vieira superou expectativas e trouxe para os seguidores dos Estados Gerais da Cultura momentos inspiradores sobre espiritualidade, luta e reflexão. O tema instigante, ‘Lucidez não ocorre sem conflito’ começou com uma homenagem ao autor do Estatuto do Homem, um dos mais influentes e respeitados poetas no país. “Abrimos o encontro homenageando Thiago de Mello, que completa 95 anos, ao reproduzir um trecho do poema, Faz escuro mas eu canto, declamado por ele mesmo”, destacou Silvio Tendler ao abrir o encontro. “Um poema dito num momento de extrema dificuldade que estamos vivendo é muito alentador”.

Faz escuro ainda no chão

Mas é preciso plantar.

A noite já foi mais noite,

a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção

feita de medo e arremedo

para enganar a solidão.

Agora vale a verdade

cantada simples e sempre,

Agora vale a alegria

que se constrói de dia,

feita de canto e pão.

Madrugada da esperança,

faz escuro (já nem entanto),

vale a pena trabalha.

Faz escuro mas eu canto

Porque a manhã vai chegar.

(Thiago de Mello)

Para completar a beleza do encontro, a fala de Eduardo Tornaghi sempre é um convite à reflexão com mais poesia. As poucas palavras tocaram fundo quem a escutou. Tornaghi começou lembrando do papel de Silvio Tendler na criação do coletivo Estados Gerais da Cultura e a importância da própria cultura como base de tudo.

“É a cultura que é o elo entre nós, que nos faz ficar juntos e ser humanos. Por isso, precisamos do Ministério da Cultura. Se o Estado não faz, nós fazemos e queremos criar em rede esta lembrança. Hoje temos o Padre Julio e Pastor Henrique, duas pessoas que militam na prática dizendo que lucidez não ocorre sem conflito, é verdade. Mas conflitos também não se resolvem sem lucidez. Para isso temos gente como eles, que vão lá e colocam a massa e aprendem qual é o problema para nos dizer e para isso temos os poetas antenas.”

Escrevi assim:

Vizinhança!

As janelas de hoje são acidentes no cimento. O foco é no que fecha. Perto só parede. Gente só de longe. Vida só de viés. Outro é outrora. Encontro é tropeço. O medo manda. Fuga e fluxo. O futuro faz-se nas janelas de hoje. Mas…. é o desconforto que nos move. Esse mas….. é porque quero seguir com o poema de Ferreira Gullar, chamado:

A VIDA BATE

Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,

revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Essas poesias mantras foram colocadas para iniciar o debate com dois religiosos que fazem a diferença no dia-a-dia de quem vive à margem da vida. Praticam na plenitude o amor ao próximo. Lucidez não ocorre sem conflito

Aroeira ilustra o site Vida Acima de Tudo. Acessem e assinem!

Acesse aqui e assine Vida Acima de Tudo

O manifesto Vida Acima de Tudo já tem um site próprio com ilustração do cartunista Renato Aroeira e disponibilizado em seis idiomas. É só acessar o link acima, assinar, compartilhar e viralizar ao máximo!

Renato Aroeira fez duas ilustração para o manifesto e autorizou a publicação das duas. O cartunista, cujas ilustrações exploram temas sociais é um verdadeiro cronista em imagens dos tempos sombrios que vivemos. “Penso  que qualquer ato de incentivo à censura, o profissional da informação deve se opor, pois este deve prezar pelos valores éticos e  de cunho social”.

As duas ilustrações são apropriações (técnica muito usada na arte contemporânea com imagens universais) da famosa série de quatro pinturas do norueguês Edvard Munch, 1893 – O Grito. A obra representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero. O plano de fundo é a doca do fiorde de Oslo ao pôr-do-Sol. 

A inspiração de Aroeira na obra de Munch não poderia ser mais precisa para definir o sentimento de angústia dos brasileiros diante da situação de calamidade que o Brasil vive hoje em função da pandemia e por descaso de um governo genocida, que não tomou medidas drásticas e efetivas para conter a disseminação do vírus.

O Grito – Edvard Munch

” Agora sim, temos um espaço virtual onde será possível não só coletar novas assinaturas, mas interagir, comunicar nossos projetos e ações em andamento, tudo em um espaço virtual elaborado e de fácil navegação”, informa José Bulcão, da coordenação do manifesto e da equipe de Comunicação dos EGC.

Mais adiante Bulcão complementa: “Já são mais de 120 mil assinaturas desde que lançamos nosso manifesto no último dia 6 de março, entre elas a de Dilma Roussef, Chico Buarque, Miguel Nicolelis, Fernanda Montenegro, Boaventura de Sousa Santos, Gilberto Gil, Adolfo Perez Esquivel, padre Júlio Lancelotti, Leonardo Boff, Silvio Tendler, Hildegarde Angel, Casagrande, José de Abreu, Carol Solberg, Gregório Duvivier, Laerte Coutinho, Renato Aroeira, Zélia Duncan, Bete Mendes, Celso Amorim e vários outros ex-Ministros de Estado e muita gente boa (há uma lista com alguns desses nomes no site).

Esse não é mais um manifesto que pretende cair no vazio. Somos um movimento popular, coletivo, abarcativo e engajado em realizar ações concretas para mobilizar a população e pressionar as instituições nacionais e internacionais a defender a vida do povo brasileiro e de toda a população mundial.

Queremos disponibilidade imediata de vacinas para salvar vidas. Queremos a quebra de patentes para que as vacinas sejam viabilizadas como um bem público universal, comercializado pelo custo e não como objetos do lucro das grandes corporações farmacêuticas privadas e das distribuidoras. Queremos que STF, OAB, CNBB, o Congresso Nacional, a ONU, através da OMS e do CIDH, a diplomacia dos países produtores e fornecedores de insumos e toda a população civil estejam empenhados em colocar a VIDA ACIMA DE TUDO.

Sim, também queremos que essa política irresponsável, cruel e genocida do governo federal seja interrompida. É de pleno conhecimento de todos que, sem que essa tarefa seja cumprida, teremos grande dificuldade em atingir nosso objetivo maior de salvar todas e cada uma das vidas humanas que estão sendo afetadas por essa doença e por essa gangue que comanda o país. Por isso, também está em nossas metas a pressão por maior celeridade do TPI (Tribunal Penal Internacional) no julgamento das notícias-crime já protocoladas naquele órgão contra bolsonaro pelo crime de genocídio.

Contamos com cada uma e cada um de vocês para tomar conhecimento desse nosso movimento, conhecer nosso trabalho, assinar a carta manifesto, caso ainda não tenha assinado, e fazer parte desse projeto em uma campanha de divulgação para disseminarmos a nossa causa, nosso pleito e nossa missão de valorizar a vida acima de tudo. Precisamos muito fazer crescer o apoio popular.

Por isso sua assinatura, sua voz e seu empenho contam demais para formarmos uma grande força coletiva pela vida de todos, em especial dos esquecidos, desassistidos e abandonados por esse governo desumano. O endereço do novo site do Movimento Vida Acima de Tudo está listado no primeiro comentário a essa postagem.

Além do português, o conteúdo do site, incluindo a carta, é fornecido em outras cinco línguas: espanhol, inglês, francês, italiano e alemão. Portanto, não vamos deixar de compartilhar com nossas e nossos camaradas espalhados por esse planeta redondo. Vamos assinar! Vamos divulgar! Vamos participar! Vamos interromper essa escalada de sofrimento e de morte!”.

Cultura faz jovens sentirem-se donos de seus destinos

Foto por FreePik

Para lembrar a todos nós: quando o governo federal termina com o Ministério da Cultura, lembrar que não só a cultura, que é base de tudo, da economia que ele tanto preza, é também um elo de ligação entre todos esses que estão realmente construindo a cultura. Não é o Estado quem promove a cultura é o povo que constrói. Cultura só se realiza de baixo para cima. Não há outra cultura possível.

Eu quero dedicar esse este dia de hoje a todos aqueles concidadãos que acham que o povo brasileiro é muito passivo. O povo brasileiro não é passivo, não. Não está parado. O povo brasileiro está construindo esta nação. E dentre as pessoas do povo brasileiro, Silvio Tendler falou especialmente em professores, destacamos aqui essa classe de servidores públicos, como professores, como Veríssimo, como Amanda. Enfim, há um exército, um enorme contigente de pessoas trabalhando e construindo esse país.

Se você está meio desanimado, sentado, não reage, procure se aproximar desses grupos e vai ver o que está acontecendo. A ação não é só participar ou não. O nosso povo aprendeu que participar é Balaiada, Cabanagem, Canudos, Contestado.

Entre esses tenho muito prazer de apresentar Julio Ludemir, o autor do livro ‘Sorria você está na Rocinha’, que abriu as portas da literatura para toda uma geração. Um homem que inventou o movimento, pegando carona na fama do FLIP, criando o FLUP, e espalhou debates pelo Rio de Janeiro inteiro, botou gente para fazer oficinas, editar livros.

E Veríssimo botou bloco na rua partindo do seu trabalho de professor no município, conseguiu movimentar toda uma comunidade para compreender sua cultura. Sentir que é dona de seu destino.

Reflexão proposta por Eduardo Tornaghi no encontro sobre: Teatro, Literatura e Dança: a potência dos territórios

Vida Acima de Tudo chegou às mãos do Pacto Nacional de Governadores Pela Vida

O manifesto coletivo Vida Acima de Tudo foi entregue ao presidente do grupo Pacto Nacional de Governadores Pela Vida, governador do Piauí, Wellington Dias. No encontro online estiveram presentes os governadores do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, do Sergipe, Belivaldo Chagas Silva, Vice- governadora de Pernambuco, Luciana Santos, e vários representantes do Movimento Vida Acima de Tudo.