O que você escolhe: A Bolsa ou a Vida

A Bolsa ou a Vida, o novo filme de Silvio Tendler. Nem o isolamento por conta da pandemia foi capaz frear a inquietação do genial cineasta, seu pensamento crítico, utopias, sensibilidade diante das desigualdades sociais que não o deixam parar de documentar, sobretudo nesse momento sombrio na história da humanidade. O seu isolamento foi apenas físico, considerando que nunca esteve tão presente e ativo no mundo virtual. Pela internet coordenou ações, entrevistou, definiu filmagens, dados, vivências, opiniões nacionais e internacionais, para denunciar um sistema genocida que valoriza mais o mercado financeiro do que a vida.

O filme é comovente e ao mesmo tempo um ‘soco na boca do estômago’ de quem assiste, para fazê-lo acordar do marasmo ao qual se encontra e se perguntar que futuro deseja construir.

No futuro pós pandemia do novo coronavírus, a centralidade será o cassino financeiro e acumulação de riqueza por uma elite ou uma vida de qualidade para todos, com menos desigualdade? O Estado mínimo se mostrou capaz de atender ao coletivo? Como garantir a vida sem direitos sociais e trabalhistas? Em qual modelo de sociedade queremos viver?“, convida Silvio Tendler à reflexão.

Os entrevistados mostram a realidade nua e crua. Emocionam inúmeras vezes como o Padre Júlio Lancellotti que conta de uma família de moradores de rua e onde vivem penduraram um crucifixo num poste luz. “Apesar da miséria absoluta, eles têm fé”.

A indignação aflora quando Rita Von Hunty, professora e celebridade Drag Queen, fala que o número de bilionários no planeta conseguiriam acabar com a pobreza do dia para noite vezes sete. 

A reflexão surge quando a indígena Márcia  Mura, nos remete a ditadura de costumes e hábitos impostos pelo colonizador. Quando o  chefe do povo indígena Suruí, Almir Narayamoga, reconhece que a Terra e Água não podem ser privatizadas. A revolta é inevitável quendo o economista americano,  Jeffrey Sachs, fala sobre a fortuna de Jeff  Bezos, proprietário da Amazon, que cresceu em 2020 em 80 bilhões de dólares.

Se ficou curioso e quer assistir o documentário deve acessar o site Ecofalante . O filme estará disponível até domingo dia 22 de agosto no site.

A Bolsa ou a Vida participa da 10a  Mostra Ecofalante está concorrendo ao PRÊMIO DO PÚBLICO. 

Texto Mari Weigert. Publicação PanHoramarte

Memória, pra quê te quero?

foto via internet – incêndio no depósito da Cinemateca Brasileira em São Paulo

Vi uma foto de um depósito de bustos e estatuetas, cheio de notáveis empilhados um sobre os outros numa harmonia desarmônica revelando a desimportância para com a história do outrora presidente do tribunal, o Marechal que não foi à guerra mas obteve o grau máximo da hierarquia militar nos conchavos de gabinete, ou com o história do professor de vida ilibada que roubava as pesquisas dos alunos.

Fui passear um domingo de manhã na feirinha do vão do MASP e vi condecorações vendidas como chapinhas de garrafa pelas famílias de entes queridos que, depois da morte do patriarca, transferiram o foco dos interesses e do amor para a poupança, jóias ou títulos de propriedade de terras.

Até mesmo louças e pratarias podem ser encontradas nas lojas de antiguidade. O valor sentimental cede espaço para a cobiça de valores materiais.

E quando esse titulo de valor material é representado por direitos autorais de obras geniais que tornam-se propriedade de um sobrinho neto que nunca se relacionou com o criador e senta em cima da obra negando acesso e usufruto à coletividade?

Reflexão: Silvio Tendler.

Nani Braun: semeando ideias mundurukanas

“A intenção aqui não é criar regras, mas criar laços ou na linguagem mundurukana ‘relações de parentesco’.”

Nani Braun foi a anfitriã do encontro Sobre Piolhos e outros Afagos, nos introduzindo ao mundo fantástico de Daniel Munduruku, grande pensador e semeador de utopias. Um representante dos nossos povos originários, um sábio conhecedor do universo indígena, um filósofo. Nani preparou o terreno para a que Daniel semeasse entre nós um pouco da nossa ancestralidade. A fala de Daniel Munduruku semeou entre nós um re-conhecimento de nossa própria história, uma re-ligação com nossa cultura e a criação de laços com nossos semelhantes. Nani Braun abriu nossos olhos para a sabedoria ancestral apresentada por Daniel – de aceitar dor e sofrimento como sendo parte de nossa humanidade, de ver a beleza que existe ao redor.
Obrigada Nani, por nos trazer as palavras de Danie Munduruku, um verdadeiro filósofo indígena, um cidadão brasileiro, um irmão.

  • Comentário de Ana Maria Nogueira, integrante do coletivo Estados Gerais da Cultura, Historiadora, professora aposentada do ensino público.

Nota oficial da ABI: Renuncie presidente!

Renuncie, presidente!
Descontrolado, perturbado, louco, exaltado, irritadiço, irascível, amalucado, alucinado, desvairado, enlouquecido, tresloucado. Qualquer uma destas expressões poderia ser usada para classificar o comportamento do presidente Jair Bolsonaro nesta segunda-feira, insultando jornalistas da TV Globo e da CNN.
Com seu destempero, Bolsonaro mostrou ter sentido profundamente o golpe representado pelas manifestações do último sábado. Elas desnudaram o crescente isolamento de seu governo.
Que o presidente nunca apreciou uma imprensa livre e crítica, é mais do que sabido. Mas, a cada dia, ele vai subindo o tom perigosamente. Pouco falta para que agrida fisicamente algum jornalista.
Seu comportamento chega a enfraquecer o movimento antimanicomial – movimento progressista e com conteúdo profundamente humanitário. Já há quem se pergunte como um cidadão com tamanho desequilíbrio pode andar por aí pelas ruas.
Mas a situação é ainda mais grave: esse cidadão é presidente de um país com a importância do Brasil.
Diante da rejeição crescente a seu governo, Bolsonaro prepara uma saída autoritária e, mesmo a um ano e meio da eleição, tenta desacreditar o sistema eleitoral. Seu objetivo é acumular forças para a não aceitação de um revés em outubro de 2022.
É preciso que os democratas estejam alertas e mobilizados.
Diante desse quadro, com a autoridade de seus 113 anos de luta pela democracia, a ABI reitera sua posição a favor do impeachment do presidente. E reafirma que, decididamente, ele não tem condições de governar o Brasil.
Outra solução – até melhor, porque mais rápida – seria que ele se retirasse voluntariamente.
Então, renuncie, presidente!
Paulo Jeronimo
Presidente da ABI

Emocionante encontro de gerações

No encontro Re-Acordar, o coletivo Estados Gerais da Cultura nos proporcionou uma verdadeira viagem no tempo. Tivemos a oportunidade de reconectar com os anos 60, que foram tão ricos culturalmente, e tão tristes politicamente. Foi emocionante reencontrar pessoas tão queridas que sacudiram o ambiente teatral daquela época e que agora retornam trazendo uma releitura do “Coronel de Macambira”, 50 anos depois. O TUCA carioca, representado por Amir Haddad e mais nove integrantes deu uma prévia maravilhosa do que será o espetáculo, que deverá estrear nos próximos dias.

Fomos também premiados com a apresentação musical de Marina Lufti e João Gurgel, cantando o inesquecível Sergio Ricardo. Uma tarde profundamente emotiva e também arrebatadora. Para os que viveram os turbulentos anos 60, o programa de ontem dos EGC ofereceu a chance de reviver os sentimentos, as experiências, os afetos. Para a geração pós 68, ofereceu a oportunidade de sentir a mesma emoção.

Obrigada Grupo TUCA, obrigada Marina e João, nossa luta continua!

Comentário de Ana Maria Nogueira sobre o 44o. Encontro dos Estados Gerais da Cultura. Re-Acordar conta a história dos integrantes do elenco, desde seu primeiro encontro até os dias de hoje. Travessia de mais de 50 anos: os anos de ditadura, prisão, exílio, viver no Brasil, e de como, através dessas vivências, chegamos ao hoje. 

Ana Maria Nogueira é integrante do coletivo Estados Gerais da Cultura, Historiadora, professora aposentada do ensino público

Reflexões sobre Formação Política por uma Democracia Participativa

Individualmente, somos um composto de saberes e ignorância derivados da cultura daqueles grupos aos quais pertencemos. Tudo que sabemos e conhecemos como verdades e incertezas nos foram transmitidos culturalmente por nossas sociedades.

Xilogravura de J. Borges. Foto via Instagram oficial do artista pernambucano J.Borges – Brasilidade Invade Sua Casa

Por que somos animais gregários – seres gregários? Na diferença genética, somos diferentes, porque somos superiores? E somos humanos como seres sociais. Mas porque somos sociais, somos resultado de nossos grupos de convivência, i.é, somos interdependentes como resultado de nossa vivência cultural. E, por isso, individualmente, somos um composto de saberes e ignorância derivados da cultura daqueles grupos aos quais pertencemos.

Então aquela estória de meritocracia não procede e nem se sustenta cientificamente, né? Tudo que sabemos e conhecemos como verdades e incertezas nos foram transmitidos culturalmente por nossas sociedades.

A superioridade cognitiva da espécie humana desde o homo sapiens na sua vivencia errante de erros e acertos produziram grandes descobertas. Mas a genialidade dessas descobertas não é exclusiva de seus criadores. Sempre foram resultados da evolução política cultural de suas sociedades, em constante transformação. Isto é porque cultura é política e sempre será. Então, aquela soberba e arrogância de suposto saber são sempre relativas, porque dialeticamente o tal saber não pode ser absoluto. E, portanto, traz em si a ignorância no balanço contraditório das certezas e incertezas.

Ora, diria eu: então o “saber científico” pode pasteurizar o “saber empírico” por suposta superficialidade e erro? Não, nos revela o materialismo histórico: todos nós temos saberes e ignorância, que na sua oralidade política cultural nos tem sido transmitidos como conhecimentos tradicionais. E, é para alguns recalcitrantes da oralidade do saber, como saber primitivo.

Como entender a complexidade da nossa sociedade sob um sistema capitalista, sem contestar esse saber ideologizado de dominação de classe, opressão, desigualdade, miséria e morte? Coloquialmente, “baixando a bola” e depois nos “dedos da palma da mão” a formação o edus de educar deve ser, antes de tudo, questionadora, insurgente, conscientizadora, emancipadora e libertadora.

Os Grandes Pensadores do materialismo histórico e sua dialética em evolução ponderaram que, apesar das incertezas, nosso processo de conscientização deve se pautar na observação rigorosa das contradições sociais, evitar sua superficialidade e buscar o concreto de suas causas e efeitos para sua compreensão e transformação pela liberdade, igualdade e fraternidade.

Então, como criar um grupo de formação política sem considerar essas individualidades do animal gregário que somos? É fundamental que isso seja posto em prática, porque nessa prática de luta transformadora, há confrontos e troca de saberes dessa vivência de cada participante na sua expressão oral ou escrita pautada na sua prática política, sua maneira de viver e ser para sua transformação compartilhada para a consolidação dessa formação política gregária.

É um erro pensar e propor grupos de trabalho herméticos, fechado no pequeno de seu saber, sem capilaridade e intercambio com outros grupos de trabalho de cultura, comunicação e ação política, porque todos são interdependentes e constituem a cultura política do grupo maior, núcleo e ou partido político.

Flavio W. Lara

Rio de Janeiro, 1º de junho de 2021

Flávio W. Lara integra a equipe dos Estados Gerais da Cultura, é ativista político e tem experiência em projetos social e ambiental. Atualmente trabalha como voluntário no complexo da Penha, Rio de Janeiro, presta consultoria e colabora com o Instituto Mirico Cota, no Baixo Tocantins (na áreas de engenharia econômica e tecnologia de recursos e produtos florestais).

A pessoa de Paulo Freire – Memórias

“Na fotografia estamos em Managua, na Nicarágua, em um evento internacional de apoio à Revolução Sandinista. Paulo Freire está entre jovens (é em 1982) que vieram a recriar com ele o que veio a ser a Educação Popular. O que está sentado e humildemente olha para o chão (talvez prestando atenção em alguma formiga passageira), sou eu”, Brandão.

Aqui apresentamos o início de um texto de Carlos Rodrigues Brandão, professor e escritor, nosso convidado no encontro sobre Paulo Freire, tantos anos depois, cujo conteúdo completo poderá ser disponibilizado a quem interessar via e-mail e contato pelo site da EGC. Segundo Brandão, os escritos foram feitos para “voar nas nuvens” e para partilhar livremente. Ele oferece artigos, livros e escritos sobre a educação, a antropologia e a literatura que podem ser acessados e copiados no seu site Partilha da Vida . Numa pequena trova talvez, cordel, pequeno poema, Carlos Rodrigues Brandão resume com poética o que representou e falou seu amigo Paulo Freire.

Viver a sua vida
Criar o seu destino
Aprender o seu saber
Partilhar o que aprende
Pensar o que sabe
Dizer a sua palavra
Saber transformar-se
Unir-se aos sues outros
Transformar o seu mundo
Escrever a sua história

Tantos anos depois

“Bem que eu gostaria de começar este apanhado ao acaso de memórias e depoimentos sobre não tanto a obra, mas a pessoa de Paulo Freire, tratando quem me leia como ele costumava falar. . Paulo usava o “tu”, das pessoas de fala espanhola, dos gaúchos, das paraenses e de mais alguns brasileiros, inclusive do Nordeste. Assim ele deixava de lado o “você”, tão mais nosso, e ao falar nos olhava na cara e dizia: “Tu, Carlos, tu, o que pensas sobre isto?”

O que desejo partilhar com vocês são algumas memórias minhas e alguns depoimentos a respeito da “Pessoa de Paulo”. Pequenos fatos, alguns triviais e quase pitorescos, outros mais sérios, mas sempre pouco acadêmicos e ortodoxos. Convivi com Paulo Freire apenas após seu retorno do exílio. Convivi com suas ideias desde muito antes, quando trabalhava como educador popular no Movimento de Educação de Base e era um “militante engajado” na Juventude Universitária Católica.

Entre voos (alguns longos), viagens por terra, salas de aulas, locais amplos de encontros, congressos e semelhantes, ou mesmo ao redor de uma mesa de bar, nós compartimos horas e horas da vida. O que trago aqui é a memória de fatos e o depoimento de feitos deste homem que de tanto ser lembrado como um militante da educação, um professor e um escritor de livros que ajudaram o mundo a ser melhor e mais consciente de si-mesmo, acabou sendo quase esquecido de ser também uma pessoa que numa mesa de bar, ou em uma viagem de avião, gostava de conversar muito sobre a vida… e muito pouco sobre a educação.

Não pretendo de modo algum escrever aqui um “livro para ser publicado”. Quando ele ficar pronto eu o vou enviar a um ramalhete de pessoas amigas. E desde já gostaria de desafiar aquelas que, como eu, algo tivessem a narrar a
respeito da “Pessoa de Paulo”, que se animassem a somar aos meus, os seus depoimentos. E, às minhas, as suas memórias compartidas. O próprio Paulo gostava muito de se autobiografar em momentos de seus livros. No entanto, observem que são mais memórias de infância e juventude do eu as de quando já era “o professor Paulo Freire”. De resto, em suas inúmeras biografia há muitos momentos de suas memórias. Sem falar na completa e
excelente biografia de Paulo escrita por Ana Maria Freire. Faltam, no entanto, “depoimentos de vida” que em diferentes situações nos ligar a este homem irrepetível.

Campinas, outono de 2018
Carlos Rodrigues Brandão

Um homem conectivo

Em muitas ocasiões a imagem de Paulo Freire colocada na capa de seus livros, em programas de encontros e em trabalhos escritos sobre a sua obra Paulo Freire aparece quase sempre sozinho. E, notemos bem, quase sempre o mesmo rosto de um homem já com os cabelos e as barbas brancas e com um sereno ar de profeta pensativo. São raras as fotos de Paulo Freire mais jovem. Raras também, a não ser em livros biográficos, as imagens de Paulo Freire em meio a outras pessoas.

Ora, esta desigualdade de proporções entre tipos de imagens revela uma falsa realidade. Paulo Freire gostava de dizer de si mesmo que sempre foi “um homem conectivo”. Um “homem-ponte”, um “homem-elo”.Convivi com ele o suficiente para reconhecer que à diferença de intelectuais (categoria da qual ele nunca gostou de pertencer), solitários, ilusoriamente autossuficientes e amantes da mesas redondas com no máximo três pessoas e dos palcos solitários com focos de luzes caindo sobre uma única pessoa, Paulo sempre foi uma pessoa “ao redor de”. E o círculo de cultura sempre foi o lugar mais fecundo e feliz que ele imaginou. Assim como “estar em equipe” foi antes do exílio, durante o exílio e depois dele, até sua partida, o seu lugar de vida e trabalho preferido.

Quantas vezes convivemos situações de partilha de palavras e de ideias, e sou testemunha de que em nenhuma delas ele guardava a pose pedante de que fica em aparente silêncio enquanto as outras pessoas falam, para então esperar o silêncio respeitoso e o foco de todas as atenções para “dizer a palavra essencial do mestre”. Ao contrário, lembro-me de diferentes situações em que sua preocupação eram muito mais a de conectar as diferentes palavras de quem partilhava um diálogo coletivo “ao redor de”, para então dizer “a sua palavra” bem mais como uma síntese do que se disse do que como a sábia e exclusiva fala de quem se guardou para afinal dizer o que todos vieram ouvir.

“Assim era esse homem de quem, se eu ousasse (e eu vou ousar) sintetizar tudo o que ele disse e escreveu sobre o povo e a vocação de quem dialoga para educar, eu escreveria isto:”

Viver a sua vida
Criar o seu destino
Aprender o seu saber
Partilhar o que aprende
Pensar o que sabe
Dizer a sua palavra
Saber transformar-se
Unir-se aos seus outros
Transformar o seu mundo
Escrever a sua história


Chacina na Pandemia

Professor Adair Rocha

Assim como a memória de nosso tempo já é inimaginável, mais ainda com o ataque assassino a uma expressão urbana da cidade multicêntrica, o território/favela do Jacarezinho. Até hoje, na lembrança das inúmeras chacinas, a fotografia tirada por Zuenir Ventura, em Cidade Partida, a partir de Vigário Geral, era a maior.

O confronto de imagem foi feito com Cidade Cerzida, em que se expõe a singularidade do Rio de Janeiro, na imagem invertida do espelho que jorra as contradições da multicentralidade da cidade, com proximidade dos confrontantes, desde Leblon/Vidigal ao anel da Tijuca, como sabe o Borel.

Que imaginário é esse que traduz como “normal” o manifesto territorial das favelas; com 1/3 da população de nossa cidade, em condições econômicas e políticas com intervalo abissal entre acesso e direitos; e na violência que explicita a necessidade de segurança, que se reduz à polícia, com prioridade para a segurança do asfalto?

E isso, facilmente, transforma sintoma em causa, reforçando o imaginário da ESCRAVIZAÇÃO, ainda hoje. Senão, vejamos: o que torna “normal” a entrada dos capitães do mato, hoje com farda, na disputa econômica do mercado da venda de drogas, facilmente, identificado como milícias. Ainda no imaginário, pedagogicamente, produzido, trabalhadores do varejo desse mercado, logo identificados como “bandidos”, cujos ataques são imediatamente identificados com uma das palavras de ordem da última campanha “bandido bom é bandido morto”. Isso justifica a ação de “execução ” desse contingente da população, negra, na sua maioria.

Esse é o texto e o contexto da chacina do Jacarezinho, em plena pandemia, apesar da determinação do STF que limita ação beligerante da polícia, nos territórios sufocados pela pandemia pela incompletude do poder público, prioritariamente, saúde.

Claro que nada disso ocorre, automaticamente. A conjuntura política apresenta parceria dos governos do Rio e do Brasil, que, por coincidência, se reuniram no dia anterior à chacina, que rezava também a presença do atual ministro da Saúde, depondo na CPI. Pode-se concluir que o caminho livre para a ação miliciana para gerar o fato que desfocaria a mídia apenas da cobertura da pauta citada. Deus não nos permita imaginar o que poderia ocorrer, quando, finalmente, ocorrer o depoimento de Pazzuelo.

Infelizmente, estamos submetidos à lógica da destruição, simbolizada na morte de Paulo Gustavo e em mais de quatro mil mortes, cada uma com nome e sobrenome e a rotina das chacinas no território das Favelas.

Só uma ação conjunta da sociedade e as instituições pode parar esse pesadelo histórico!

Nota: Adair Rocha é autor do livro Cidade Cerzida, a costura da cidadania no morro Santa Marta.

Poema para mundo melhor e possível – em um só fôlego

Que esta Terra, enfim, seja nossa verdadeira oca, casa comum de todos os seres. Pois o humano é apenas um entre múltiplas espécies.

Oca, Tapera, Terreiro – 2016/ Bene Fonteles(Bienal de São Paulo)

Pindorama, Terra das Palmeiras, onde sopra os ares do quilombo dos Palmares, e corre também sangue branco vindo de outros mares com semelhantes males. São proscritos de todo tipo de pogrom. Quantas formas de quilombo, de refugiados ou fugidos? Nosso mundo real ou mítico, se Pasárgada, Pindorama, Palmares ou Cucaña (ou Cocanha) não é nenhuma Terra firme  ou já dada. É Terra onde se sonha um sonho que se assanha e nasce a cada manhã em busca de sociedade mais justa. Com arte, cultura, liberdade e resistência e na aventura da descoberta do que somos e do que outro é, com tantas e ricas diferenças. Local onde, por exemplo, a favela, mais que fala, possa existir plenamente, sendo realmente ela, e nos ensine, a cada momento, a acabar com as mazelas em solidários encontros, derrubando todo escombro, juntos por um mundo novo. Tal luta não é luta vã. Porque nasce, toda manhã, a poesia da vida, que, como diz Edgar Morin, é mais importante que a frágil felicidade, dependente de muitas condições. Necessário, então, abrirmos clarões de poesia para momentos de êxtase e alegria. Se viver não é preciso, viver poeticamente é urgente. Um mundo apenas de prosa, só de sobrevivência, não é nada interessante. Juntemos toda gente para viver poeticamente, e florescer em vida amante. Se nosso céu tem mais estrelas, não importa tanto saber, pois há um encanto maior: delas, somos poeiras, mesmo daquelas já mortas. E, seguindo nesta esteira, tempos passados são rastros que iluminam e mostram o caminho da pura mina, tesouro comum a todos, sem nenhuma distinção que nos mate ou oprima. Um mundo além-mundo, aberto ao pluriverso. Neste mundo, mais que cidade, cabe trabalho digno, terra boa e cultivada, tecnologia a serviço de toda a humanidade; cabem várias crenças, com respeito e acolhimento, sem terríveis e absurdas desavenças; cabem compartilhados saberes no colo generoso e de boa-fé; cabem indivíduos e suas liberdades em nome do coletivo, atentos ao mar e às marés. Pois revezes e agruras sempre vão acontecer. E, da queda, quem sabe, uma brecha, abertura ou aventura onde cada um se arrisque e se mexa sem perder a ternura de Che. E no instante que o adulto balance, que venha a música de Milton na letra do eterno Brant. Seremos sempre meninas ou meninos, moleques a oferecer apoio e dar a mão, coração aberto em leque. Ancestrais nos deram rede para fazermos do balanço uma forma deitar, parar e descansar. De tribos assim, de outros confins, vem o termo “palavra” como sinônimo de “alma” – verdadeira, clara, e não coberta por artifícios. Palavra sem vícios e plena de atos. Três termos unidos dariam direção: “palavra”, “alma” e “ação” a virarem “palavralmação”, neologismo meu bem vivo contra cruel e qualquer desamor ou armação. Palavra ativa, e deste jeito transformada, sai fresca da fornada e vai ao encontro de uma conhecida e clara expressão: “paz com voz” para todos nós que não descarta o entusiasmo, a tesão pela vida – o bem maior a nos dar corpo, guarida. Vida louca, vida breve, bem disse Cazuza, outro bom moleque. Aprendamos com nossas musas, a Utopia, a Arte e a Liberdade. Vida, boa e eterna escola. Na onda de Paulo Freire, no leme da educação, vamos mudando a nós mesmos para transformar o mundo, uma boa viração. Queremos um mundo sem fronteiras, rico de cultura, e por ele lutamos e lutaremos – não pedimos como esmola. Que esta Terra, enfim, seja nossa verdadeira oca, casa comum de todos os seres. Pois o humano é apenas um entre múltiplas espécies. Vasto céu, vasto oceano, maiores do que supomos, acima de nossas cabeças, abaixo de nossos pés. Nossas certezas são pisos movediços de convés. O horizonte nos move, nos faz seguir adiante, o caminho ao caminhar. Seguimos nas pontes do afeto e não estamos sozinhos na trilha do esperançar.

Delayne BrasilPoetisa, escritora, cantora e compositora e faz parte dos Estados Gerais da Cultura

Democratização dos desportos em espaços públicos

por Flávio Lara

O resgate, fortalecimento e desenvolvimento das manifestações culturais populares são fundamentais para a reestruturação sócio-política de uma sociedade, seja na preservação e difusão de sua memória e identidade cultural como na estimulaçãode sua criatividade e elevação de sua auto-estima e qualidade de vida expressadas nas suas pessoas e famílias. 

Na primeira década deste século XXI, um dos grandes desafios da gestão sociopolítica das regiões urbanas em suas conurbações e irradiações nas suas redes de cidades em seus núcleos centrais e periféricos é, justamente, a combinação da diversidade cultural dos seus habitantes oriundos de diferentes regiões rurais e urbanas no seu dramático movimento migratório no último quartel do século XX. 

Em determinados núcleos urbanos recém criados a partir da implantação de mega projetos de mineração, agricultura e outras formas de industrialização a complexidade do tecido social dessas novas cidades é agravada pela invertebração dos diferentes grupos sociais “new comers” com suas respectivas origens e tradições culturais. Nestes casos, a tendência à formação de guetos e à elevação do atrito conflituoso entre si é parte do desafio político de gestão citado anteriormente. 

A explosão demográfica nas metrópoles brasileiras e de muitas outras de suas cidades de porte grande e médio não resulta das suas taxas de crescimento de natalidade, mas de grandes contingentes migratórios das mais diversas regiões do país. A diferença do tecido social das “novas cidades” citadas está na vantagem da idade desse processo migratório que já produziu uma e ou duas novas gerações de pessoas adultas nascidas nessas cidades acrescentarem um componente novo e complementar às origens e manifestações culturais parentes ascendentes. 

Em quaisquer dos casos, pode-se observar uma nucleação por origem desses migrantes como nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiros e São Paulo, assim como em Paris – FR, Nova Yorque – EUA e Londres – GB, entre outras.

A integração dessas comunidades está intimamente ligada à qualidade urbana de sua cidade avaliada a partir do significado e da riqueza dos lugares públicos que a compõem, onde a presença e coexistência de uma multiplicidade de pessoas, ofícios, comunidades e culturas que se complementam mutuamente nesses espaços públicos como os locais da sociabilidade democrática, do convívio e do intercâmbio social. 

Agora, então fica claro a importância da revitalização dos espaços públicos de convivência e a criação de outros novos para contribuir no resgate cultural dessas sociedades e sua consolidação enquanto um tecido social novo, vivente, criativo e democrático onde a qualidade de vida de sua gente se fortaleceria. 

Assim, a partir dessa premissa, a prática das manifestações culturais e do desporto deve privilegiar aquelas modalidades mais democráticas que favoreçam a participação coletiva de suas comunidades. 

O futebol, amplamente difundido no Brasil e cada vez mais no mundo, é bom exemplo disso, porque é uma modalidade popular, de baixo custo e incentivadora do trabalho de equipe, do respeito e da confraternização entre os seus participantes. E, em sua popularidade, assume uma transversalidade sócio-política que permite a aproximação de diferentes estratos e grupos sociais, oxigenando o tecido sócio-urbano dessas comunidades através de competições esportivas e culturais como a sua melhor costura. 

Outras formas de competição esportiva que favoreçam o espírito da participação coletiva também devem ser incentivadas, assim como manifestações culturais e artísticas tais como “rodas de leitura” (para discussão de temas estimuladores da consciência e direitos da inclusão social), “contadores de estórias”, grupos musicais teatrais, “grafitagem”, cinematografia, videografia, entre outras. 

Finalmente, a maior vantagem do investimento sócio-político e econômico desse polinômio de democratização das manifestações culturais e desportos nos espaços públicos de convivência revitalizados é o resgate da alegria e boa convivência das comunidades com mais saúde mental e física para uma sociedade mais fraterna, cooperativa e criadora e inovadora de seu tecido social. 

Texto por Flavio W. Lara Instituto ComAfrica Rio de Janeiro, Set. 2006, com o título original : A democratização das manifestações culturais e desportos nos espaços públicos de convivência revitalizados